Brasil negligencia ensino sobre dor e forma profissionais da saúde despreparados

A dor crônica, condição que aflige mais de 60 milhões de brasileiros, permanece um tema marginalizado na formação dos profissionais de saúde no país. Dessa forma, a ausência da disciplina nos currículos de graduação das universidades expõe uma falha grave no sistema educacional, conforme aponta Carlos Marcelo de Barros, professor da Unifal-MG e presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED). “Hoje, o ensino de dor não é institucional na graduação das universidades, não está presente na grade. E aí você forma profissionais totalmente incapacitados, que maltratam os pacientes em hospitais”, denuncia o especialista.

Nesse sentido, a única maneira de proteger a população, segundo Barros, reside na inclusão do estudo da dor na formação de todos os profissionais de saúde, para que reconheçam, compreendam e orientem adequadamente os pacientes. Para explorar melhor o tema que a afeta diretamente, a jornalista Larissa Agostinho Teixeira, (repórter, redatora e editora de vídeos e documentários), que relata de forma pessoal sobre dor crônica para o UOL, escreveu um artigo de opinião com uma série de depoimentos de especialistas (que serão utilizados para explorar o tema também nesta matéria).

Iniciativas isoladas e entraves burocráticos

Apesar do cenário preocupante, algumas iniciativas buscam reverter essa situação. Em 2018, a Unesp criou uma disciplina pioneira que integra os aspectos biológicos da dor aos fatores psicológicos, sociais e espirituais da experiência dolorosa. De acordo com Fernanda Fukushima, pesquisadora da Unesp, essa abordagem inovadora começa a formar profissionais mais conscientes. “A fisiopatologia da dor foi matéria do segundo ano. Ela acontecia dentro de um olhar bastante biológico e descontextualizado da vivência do médico”, relembra a médica.

No entanto, a institucionalização do ensino da dor em nível nacional enfrenta obstáculos. Um exemplo disso é o Projeto de Lei 336/2024, que visava incluir a matéria como obrigatória nos cursos da área da saúde. Embora a Câmara tenha aprovado o texto, o Senado precisou alterá-lo, já que a mudança curricular compete ao Conselho Nacional de Educação e ao Ministério da Educação. Sendo assim, a deputada Bia Kicis (PL-DF), coautora do projeto, encaminhou uma indicação ao MEC para que este considere a inclusão do estudo da dor. “Mais de 60 milhões de brasileiros convivem com dor crônica —e, mesmo assim, o tema praticamente não se ensina nos cursos de saúde. Isso é inaceitável. Não dá para cuidar de gente sem entender o que mais aflige a população”, argumenta Kicis.

Consequências para pacientes e sistema de saúde

A falta de conhecimento adequado sobre a dor por parte dos profissionais de saúde acarreta sérias consequências. Pacientes com dor crônica frequentemente peregrinam por anos em busca de diagnóstico e tratamento eficazes, o que impacta não apenas sua qualidade de vida, mas também onera o sistema de saúde. De acordo com Gabriel Kubota, coordenador do centro de dor da USP, estima-se que a perda de produtividade relacionada à enxaqueca gera um gasto de R$ 67 bilhões anualmente no Brasil. “A pessoa não trata da forma adequada, vai ao pronto-socorro, faz uma série de exames e consome mais medicação que o necessário. Muitas vezes, ela se torna incapacitada e não consegue se inserir no mercado de trabalho. A educação em dor poderia minimizar todos esses custos”, explica Kubota.

Ademais, a ausência de formação específica contribui para o desconhecimento e o estigma em relação aos pacientes com dor crônica. “É fácil desvalorizar o sofrimento de uma pessoa e estigmatizar um paciente quando você não sabe do que está falando. Se uma formação adequada existisse, não conseguiríamos reduzir essa estigmatização?”, questiona Kubota.

Lacuna entre formação e demanda

Apesar de o estudo Demografia Médica no Brasil 2023 apontar um aumento no número de médicos no Brasil, a quantidade de especialistas em dor ainda é insuficiente. Embora cursos de pós-graduação focados em dor tenham surgido nas últimas décadas, eles formam um número limitado de profissionais. “As pós-graduações formam uma quantidade mínima de especialistas. Não adianta o governo aprovar essa lei hoje e colocar o serviço de dor disponível no SUS se você não tem equipe formada para isso. E não vejo hoje uma vontade das universidades em fazer esse movimento”, critica Barros.

Dessa forma, Kubota, da USP, ressalta a crescente lacuna entre as necessidades da sociedade e o conteúdo que as universidades ensinam. “Na década de 70, você não falava de dor crônica como especialização, mas esse conceito mudou muito. Por mais que hoje existam dados sobre prevalência, impacto na saúde dos pacientes e no sistema econômico, as demandas do tratamento de dor não se refletem na formação clássica médica, que se apoia em conceitos mais tradicionais. Eu entendo que se a gente tem uma chance de resolver o problema, isso começa por educar bem as pessoas que estão na faculdade”, conclui o especialista.

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