Faleceu na última sexta-feira, em Belo Horizonte, aos 100 anos, a soprano Maria Lúcia Godoy, uma das figuras centrais do canto lírico brasileiro no século XX. Artista de sólida formação e trajetória internacional, construiu um repertório profundamente vinculado à canção brasileira de concerto, com destaque para sua longa e comprometida dedicação à obra de Heitor Villa-Lobos.
Sua gravação da Bachiana brasileira nº 5 tornou-se referência interpretativa. A relação com Villa-Lobos ultrapassou o domínio técnico, tratava-se, como ela mesma afirmou: “um contato de amor”.
Nascida em Mesquita (MG), formou-se em Línguas Neolatinas pela Universidade Federal de Minas Gerais, formação que considerava essencial para a precisão na pronúncia de textos em diversas línguas. A carreira teve início ainda na juventude, mas ganhou fôlego no Rio de Janeiro dos anos 1950, após estudos com Pasquale Gambardella. Nesse período, venceu os concursos Lorenzo Fernandez, Vera Janacopulos e o concurso de solistas da Orquestra Sinfônica Brasileira.
Foi casada com o maestro Alceo Bocchino, que atuou como regente titular da Orquestra Sinfônica Brasileira. A parceria de vida refletiu-se em colaborações musicais importantes, em um momento em que se consolidavam as bases institucionais da música de concerto no país.

Entre os marcos de sua trajetória estão a estreia no Carnegie Hall, sob regência de Leopold Stokowski, e sua apresentação na inauguração de Brasília. Gravou obras centrais de Villa-Lobos, como A floresta do Amazonas e Serestas. Godoy ainda incorporou ao repertório compositores como Hekel Tavares, Fructuoso Vianna, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Waldemar Henrique, Marlos Nobre, Edino Krieger, Jayme Ovalle, Lorenzo Fernandes, José Siqueira, Willy Corrêa de Oliveira e tantos outros.
Participou da estreia de obras de compositores brasileiros do século XX e teve papel crucial na consolidação da canção de câmara como gênero representativo da produção vocal erudita no Brasil. Sua atuação junto ao Madrigal Renascentista, a partir de 1956, ampliou o alcance da música vocal de concerto, em contextos que iam do circuito universitário às salas internacionais.

Ao interpretar textos de poetas como Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e Ferreira Gullar — que a definiu como “uma voz que lembra um pássaro voando” — Maria Lúcia estabeleceu conexões sensíveis entre poesia, som e identidade cultural.
Em 2017, recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela UFMG. Na ocasião, o professor Mauro Chantal destacou:
“Por seu esforço contínuo, ao longo de mais de cinco décadas, para que a música brasileira chegasse a todos os continentes, ela pode ser considerada o estandarte da canção de câmara brasileira”.
Publicou livros de poesia e, por mais de uma década, assinou coluna no jornal O Estado de Minas, registros que revelam uma artista atenta aos processos culturais e linguísticos de seu tempo.
Maria Lúcia Godoy deixa um legado construído com rigor estético, repertório vasto e uma rara coerência entre obra, pensamento e país. Sua voz permanece nos fonogramas, nas partituras que ajudou a tornar conhecidas e na escuta de gerações que ainda virão.
Ouça sua interpretação de Bachianas brasileiras nº 5 – Cantilena e Dança do Martelo, de Heitor Villa-Lobos, com regência de Alceo Bocchino (1977),
Observe, em especial, a expressividade contida, o uso refinado das variações dinâmicas e o domínio técnico que permite à música falar com clareza e profundidade. Trata-se de uma das leituras mais significativas já registradas da obra.
O post Maria Lúcia Godoy: o canto como projeto de nação apareceu primeiro em Jornal Opção.