Morre o gramático que incluiu a palavra dorama ao dicionário da Academia Brasileira de Letras

O filósofo do humor Millôr Fernandes disse, com certo exagero, que, quando o ex-presidente José Sarney escreve, a Língua Portuguesa grita de dor. Há quem postule que gramáticos não escrevem bem e, por isso, parte dos brasileiros não consegue entender gramática.

Quem escreve bem, com habilidade suficiente para fazer a língua bailar no palco da vida, são os escritores. Pois havia um gramático que escrevia muito bem. Trata-se do recifense Evanildo Bechara, que morreu aos 97 anos, na quinta-feira, 22, de falência múltipla de órgãos.

Pode-se dizer, e talvez Millôr Fernandes o aprovasse: “Quando Evanildo Bechara escreve, a Língua Portuguesa grita… de prazer, de alegria”.

Há quem avalie Evanildo Bechara como um gramático e filólogo tradicionalista. É e não é. De fato, apreciava o uso escorreito da Língua Portuguesa, dissociando a fala da escrita, que não deveriam ser pares.

Sobre a fala quase todos os indivíduos não têm muito controle, dada até a pressa em verbalizar as palavras, daí se “comer” parte delas (e suas concordândias). A respeito da escrita, diria o gramático, é outra cousa. Porque se tem controle — e tempo — para arranjos e rearranjos. Para o normativo.

A palavra “dorama” caiu no gosto popular e entrou quase à força na Língua Portuguesa, e não apenas entre os jovens. O que significa? Nada mais do que “drama” em coreano e japonês. Pois, quando tinha 95 anos — quase um século de vida —, Evanildo Bechara defendeu sua inclusão ao dicionário da Academia Brasileira de Letras. Venceu a causa, claro. Porque a língua da rua, a que se fala todo dia, ainda que certas palavras não se firmem, é hegemônica. Ninguém a vence, nem o mais conservador dos gramáticos e lexicógrafos.

Livros de gramática indicam o estudo de uma língua “morta” para seres “vivos”? Não é bem assim. Os obituários destacaram um livro de Evanildo Bechara, “Moderna Gramática Portuguesa” — a palavra “Moderna” sublinhando que a gramática “evolui” —, que, de fato, é um portento em termos de qualidades (no plural mesmo).

Trata-se de uma gramática excelente. Todas as gramáticas são iguais? São e não são. Quer dizer, a de Evanildo Bechara é tão boa que se aprende gramática — depois de aprendida, deve ser esquecida, como acontece com os grandes prosadores, como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles — sorrindo, sem dores, digamos assim.

Se me perguntarem “por onde devo começar a ler Evanildo Bechara?”, um gramático que era escritor, não direi: “Comece pela Moderna Gramática Portuguesa”.

Sugiro, isto sim, que o leitor consulte os três volumes de “Uma Vida Entre Palavras”: “Fatos e Dúvidas de Linguagem” (1), “Análise e História da Língua Portuguesa”, 2) e “Mestres da Língua” (3). Na verdade, são mais do um curso intensivo sobre a Língua Portuguesa. São aulas de civilização.

Entre os mestres da Língua Portuguesa está, para Evanildo Bechara, Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho manipulava a língua e a linguagem como queria, fazendo-a dançar de acordo com a música de suas palavras.

De alguma maneira, os grandes escritores, como Machado, Rosa, Graciliano e Clarice, reinventam a língua, inclusive ao modificar os sentidos das palavras, ou ao recriar palavras ou a juntá-las formando novos vocábulos, com sentidos diversos ou ampliados.

O brasileiro e o português: duas línguas ou não?

Em 1972, com seu conhecimento amplo, Evanildo Bechara, seguindo orientação do mestre Antônio Houaiss — que pôs “Ulisses”, de James Joyce, no português brasileiro pela primeira vez —, contribuiu, de maneira decisiva, na organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa”. Hoje, o levantamento inclui, ao todo, 340 mil vocábulos.

O presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira, diz a respeito do companheiro de ABL: “Evanildo Bechara era o maior especialista em Língua Portuguesa, com fama que ultrapassa nossas fronteiras. Foi o representante brasileiro na reforma ortográfica”.

Evanildo Bechara não concordava com a existência de uma “língua brasileira” e de uma “língua portuguesa” (esta, de Portugal).

“A língua é sempre a mesma língua portuguesa, a língua portuguesa dentro de um padrão lusitano, de um padrão brasileiro, de um padrão africano”, disse numa entrevista à “Folha de S. Paulo”.

Talvez Evanildo Bechara tenha razão. Mas uma língua pode “parir” outra e tudo indica que a língua portuguesa, a de Portugal, deu à luz uma nova língua, o português brasileiro. Na base, as duas são próximas, quase uma só. Mas há diferenças, e em vários sentidos — tanto na escritura quanto na fala.

As “duas” línguas se tornaram independentes uma da outra e nem ajustes feitos há pouco tempo — uma reforma “ortográfica” — contribuíram para unificá-las. As culturas de Portugal, do Brasil, de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe são muito diferentes e conectadas a línguas locais diversas, notadamente no caso brasileiro e africano, que recriaram a base.

Portanto, pode-se dizer: “Falo português e inglês”. Assim como se pode dizer: “Falo português do Brasil, falo português de Portugal e falo português da África”.

Eu estava lendo a biografia “Churchill — Caminhando Com o Destino” (1160 páginas), de Andrew Roberts, publicada em Portugal pela Texto Editores, com tradução de José Mendonça da Cruz.

Como havia uma sensação de estranhamento, de que não estava lendo em português, o brasileiro, ao ficar sabendo que havia uma edição da Companhia das Letras (1200 páginas), com tradução de Denise Bottmann e Pedro Maia Soares, abandonei a versão de José Mendonça da Cruz.

A tradução de Denise Bottmann e Pedro Maia Soares é excelente e obtive a sensação de que estava lendo uma obra traduzida, com percuciência, do inglês. A edição portuguesa me deixou a impressão de conter uma língua “amolecida”, não muito viva, quer dizer, não uma língua morta, mas, digamos assim, “envelhecida”. Menos caliente. Mais certinha, sem a nossa malemolência linguística.

Se estivesse vivo, e lesse meu texto, Evanildo Bechara por certo diria: “Meu filho, o que você diz são filigranas. A língua é a mesma porque sua base é a mesma”.

“A língua não muda. Nós é que mudamos a língua. A língua é o corpo, que continua o mesmo. A mudança está na roupa que veste o corpo”, disse o mestre, que fará falta. Como tantos fazem. Mas os que deixam uma obra, como Evanildo Bechara e Machado de Assis, nunca serão esquecidos.

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