Além de gente morta, há pessoas vivas sendo vilipendiadas

A anomalia é a ração diária dos veículos de comunicação. A normalidade não é o assunto da hora para movimentar as engrenagens das redações de notícias; o sangue (literal e figurado) é o combustível da propulsão da informação. Falando em notícias, a sobrinha que levou seu tio já morto a uma agência bancária no Rio de Janeiro para realizar um empréstimo de R$ 17 mil repercutiu no Brasil e no mundo. O morto era Paulo Roberto Braga, de 68; e a sobrinha, Érika Souza Vieira Nunes, de 42 anos.

Esse fato foi cantado em verso e prosa. O “Domingo Espetacular”, por exemplo, da TV Record, fez uma chamada no estúdio com uma cadeira de roda ao lado do casal de âncoras. Eles me pareceram querer chorar, porém não conseguiram; seus semblantes conseguiram passar tristeza. Esse acontecimento virou até tema de memes e vídeos mais sarcásticos. Alguns bem escrotos. Os memes envolveram até lulistas e bolsonaristas, cada bando querendo socar o olho do adversário e assim arrancar aplausos de sua encabrestada claque e consequentemente fazer com que seus soldados virtuais disseminem a imagem.

A notícia me deixou chocado. Há, no entanto, coisas mais horripilantes acontecendo em todos os cantos do mundo, que vão além de vilipêndio de cadáver, que é crime previsto no artigo 212 do Código Penal. Mais que de desrespeito, ridicularização e ofensa a honra a um corpo morto, há pessoas vivas passando por situações semelhantes, muitas até sendo assassinadas injustamente pelo aparelho repressor do Estado e a ação sendo justificada com mentiras ardilosas, muitas inclusive sendo desmentidas graças ao jornalismo sério praticado por alguns veículos de comunicação.

Vendo o homem morto na cadeira de roda, todo mole, sem conseguir manter a cabeça erguida, me lembrei de um trecho do livro “Juscelino Kubitschek, o Médico”, de Fernando Araújo, que li recentemente. O autor levou cinco anos pesquisando para escrever a obra. Com o golpe do Estado Novo, protagonizado por Getúlio Vargas em 1937, Juscelino, que era deputado federal, teve de voltar à vida de médico. Profissão, segundo ele, conseguida com muito sacrifício: “Nada na vida me custou tanto esforço como cursar a faculdade de medicina e formar-me. Pertenci à estirpe dos estudantes sem mesada, dos que, durante o curso, trabalham por necessidade”. Ele, entretanto, retorna ao cenário político 1940, quando foi nomeado a prefeito-interventor de Belo Horizonte.

Juscelino veio de uma família pobre. Foi calçar o seu primeiro sapato aos 12 anos. Perdeu o pai quando tinha 3 anos de idade. O esteio da casa era sua mãe, Júlia Coelho Kubitschek de Oliveira, uma professora primária que percorria diariamente 12 quilômetros para ir lecionar numa escola da zona rural de Diamantina, Minas Gerais, e assim cuidar do casal de filhos (a primeira filha, Eufrosina Kubitschek de Oliveira, morreu bebê): Juscelino e Maria da Conceição Kubitschek de Oliveira, ambos respectivamente apelidados de Nonô e Naná.

Paulo Roberto Braga, “o morto em busca de empréstimo bancário”, digamos assim, entra no livro quando Juscelino volta a trabalhar como médico. Como havia perdido a destreza no uso do bisturi para realização de cirurgias, surgiu a necessidade de voltar a praticar anatomia. E isso acontecia à noite quando não havia estudantes, tudo às escondidas, mas com autorização do diretor da faculdade. Era apenas JK e inúmeros cadáveres de todos os sexos, idades e cores na sala de anatomia sobre as cumpridas mesas metálicas. Em meio à rotina de dissecação, pôs-se a pensar que vida aqueles cadáveres tiveram.

Foi por aí o meu pensamento em relação ao morto do banco. Muita coisa me passou pela cabeça. Ele não “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, mas certamente deve ter subido a “construção como se fosse máquina” e certamente algum dia “comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe”. O certo mesmo é que sua morte viralizou nas redes sociais enquanto chacota.

Tenho um primo que embarcou na chacota. Ele é pastor, mas não está dentro da corja que vende a palavra de Deus. O pão de cada dia dele é buscado com muito suor: tem um caminhão e faz fretes. E pega no pesado pra valer. Enfim não vive da obra como muitos espertalhões, vestidos de ovelhas enquanto o lobo dentro de suas almas imundas bate a carteira dos fiéis ingênuos sub-repticiamente. Meu primo, do qual muito gosto, é um bolsonarista ferrenho. Suas postagens são mais voltadas à defesa do mito. Dias atrás, postou uma montagem do Lula da Silva se passando pela sobrinha que levou o tio já morto para pegar um empréstimo bancário. Na imagem, o tio era o ministro do STF Alexandre de Moraes.

Comentei em sua postagem que os dois bandos políticos usaram o episódio da sobrinha com o tio morto. Além de comentar, coloquei uma foto que apareceu no meu Facebook, na qual a ex-primeira-dama Michele Bolsonaro representa a sobrinha, e seu marido, o Jair, é o tio. Tomara que meu primo tenha entendido que titica virtual é mútua entre dos dois bandos e pare de ser um soldado perdido, inconsciente de que não está lutando pela pátria e que assim está vivendo sem razão. Para não dizerem que sou lulista, informo que, na claque de Lula, há também soldados na mesma situação.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza.

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