Filósofo Lux Ferry discute a felicidade e o espiritualismo laico

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal

[1ª parte da resenha do livro “Aprender a Viver — Filosofia Para os Novos Tempos” (Objetiva, 240 páginas, tradução de Vera Lúcia dos Reis), de Luc Ferry]

Crer ou não crer na existência de Deus é uma dúvida existencial, que aflige a alma da maioria dos seres humanos. A vida é uma incerteza para aqueles que não têm instrumentos, dentro de si, para atenuar os problemas da própria existência. Nesse contexto, a fé e a religião enfrentam-se em torno de uma delicada questão: Deus existe? O sim ou o não identifica o ser ou o não ser ateu.

Se, por um lado, as religiões pregam a existência de Deus pela fé, a fé, que remove montanhas, constitui-se num dos principais atributos para aqueles que almejam estar no paraíso.

 Por outro lado, os agnósticos entendem que esse paraíso pode ser construído, aqui na Terra, desde que a razão seja usada como um instrumento que leva o indivíduo a conhecer a si mesmo.

O respeitado filósofo francês Luc Ferry, ateu confesso, defende o que ele chama de “espiritualismo laico”. Para ele, esse espiritualismo “é uma filosofia que vai além da ética e que, de alguma maneira, situa-se depois da religião”.

Essa “Bíblia humana”, construída por filósofos como: Platão, Aristóteles e, até mesmo, pela psicanálise de Freud, é o caminho terreno, que nos leva a curar de males, atormentadores da nossa alma. Aqueles que seguem por esse caminho conseguem ter uma vida feliz, neste mundo, tão impregnado de sentimentos negativos como: a depressão e a angústia. Além disso, o indivíduo, que conhece a si mesmo, encara a morte com serenidade, sem desespero. O autoconhecimento é o que faz a diferença para aqueles que almejam ter uma vida feliz aqui mesmo na terra.

Mas nem todo filósofo é agnóstico. Um desses é um pensador muito respeitado pelas suas contribuições teóricas para o avanço da filosofia. Trata-se de Baruch Espinosa. É ele que Luc Ferry e alguns de seus pares propõem-se a derrotar. Talvez esteja aí a mensagem central do livro: dois filósofos de primeira linha digladiando-se com argumentos racionais em torno do que seja uma vida feliz.

Quem é o filósofo Luc Ferry

Aos 73 anos, Luc Ferry é um dos mais respeitados filósofos da França. Ele conquistou o mais difícil nível dos três doutorados de que dispõe a academia francesa: o de doutor de Estado. Os outros dois doutorados são o de terceiro ciclo — de média dificuldade — e o universitário, de baixa dificuldade. Exerceu o cargo de ministro da Educação da França, no governo do primeiro-ministro Jean Pierre Raffarin. Ateu convicto, o autor faz uso da razão crítica para se contrapor à fé religiosa e para investigar os labirintos da alma humana. Para ele, é possível construir uma vida feliz por meio do conhecer a si mesmo.

Devido à complexidade inerente a questões que envolvem a filosofia e a religião, creio ser oportuno tangenciarmos alguns temas, que nos ajudarão a entender as partes inseridas no todo dessa discussão.

1

A razão e a fé na hora de nossa morte

Decididamente, o autor enquadra-se no grupo de filósofos, que acreditam no poder da razão, como instrumento para se construir uma vida feliz.

Inserido nesse contexto, Luc Ferry aponta para outro tipo de espiritualidade que, para ele, conforta o indivíduo, com o poder da razão, no momento da passagem humana para o inferno ou para o paraíso. Quem almeja trilhar o caminho da razão, já se embeveceu da profundidade do conhecimento filosófico, tendo Platão como carro chefe ou a psicanálise de Freud como instrumento de análise.

Baruch Espinosa: o filósofo viveu apenas 44 anos | Foto: Reprodução

Deixemos que o autor esclareça-nos sobre esse importante divisor de águas que existe entre a razão e a religião: “ existem sim espiritualidades que passam por Deus e pela fé, e são as religiões; e  espiritualidades sem Deus e pelas vias simples da razão, e são grandes filosofias que, inegavelmente, de Platão   até nós ,também se preocuparam além, até mesmo, na questão do conhecimento e da moral, com a sabedoria e com a vida feliz sem, no entanto, aderir a uma religião nem elaborar uma teologia.”

Isso posto, relato minha própria experiência, quando estive internado com Covid, numa UTI, com real perigo de morte, numa época em que os hospitais estavam superlotados.

Naquele momento, ao redor de mim, vi gente morrer e gente lutando para não morrer. Sozinho, absolutamente sozinho, eu não tinha nenhum ente querido a meu redor. A hora da morte levou-me a recorrer não ao conhecimento filosófico que pouco conheço. Deus veio até a mim e deu-me uma nova chance para que eu pudesse voltar a viver.

2

Colapso das religiões e destruição criativa

A inovação tecnológica provoca, no capitalismo, dois efeitos que se contradizem quanto aos objetivos: de um lado, a destruição das velhas estruturas alicerçadas no tradicionalismo; de outro, a construção de novos suportes condizentes com uma nova realidade, impregnada nos valores de uma sociedade moderna. O novo impõe-se, dentro de uma nova estrutura mais condicentes com uma sociedade em transformação, que ruma para a modernidade.

Esse poderoso instrumento analítico, desenvolvido pelo professor Joseph Schumpeter, da Universidade de Harvard, ficou conhecido, nos estudos de economia, como sendo “a imaginação destruidora de Schumpeter.” Luc Ferry entende que esse conceito se estende para filosofia.

Luc Ferry: filósofo francês | Foto: Reprodução

Ele aponta para o declínio das religiões, ante ao desencanto dos fiéis, com as promessas da conquista do paraíso. Nessa realidade, os ventos da mudança shumpeterianos são de grandes utilidades para os estudos da sociedade e da filosofia. Do ponto de vista filosófico, a contribuição de Schumpeter constitui-se um instrumento analítico de suma importância para que se possa entender o poder da inovação (ou mudança) de uma sociedade tradicional para outra alicerçada nos valores da modernidade. Desse modo, o paraíso de uma vida feliz, prometido para o pós-morte, poderá ser vivido, aqui mesmo, na terra. Vejamos alguns exemplos de aplicação do conceito de destruição criativa, aplicada nos estudos de transformações sociais.

 A tradição dos casamentos arranjados pelos pais, sem consentimento dos jovens, faz parte de uma tradição, que já não existe mais. O que vê, hoje, é o casamento por amor e a emancipação feminina.

Cabe, aqui, citarmos o movimento de maio de 1968, na França. Na realidade, de então, valores tradicionais, tipicamente burgueses de nossos avós, foram destruídos para que pudesse surgir uma nova sociedade, voltada para o lazer e para o consumo de massa. Não tenha dúvidas de que, por trás desse movimento de 1968, encontrava-se os anseios do capitalismo por uma nova ordem de valores. E, assim, conforme nos relata Luc Ferry, a imaginação destruidora de Schumpeter é, sem lugar à dúvida, um poderoso instrumento analítico, capaz de atender as demandas dos estudos filosóficos, voltados para o entendimento do que seja uma vida feliz, construída sob o alicerce da razão.

3

Sabedorias antigas ajudam-nos a viver bem

De que forma podemos enfrentar as inquietudes do envelhecimento e da morte sem nos desesperar? Certamente, conhecer as sabedorias antigas ajudam-nos a encarar esse problema com serenidade.

Para aqueles que lutam contra o envelhecimento (haja plásticas!)  vão de encontro ao fluxo da natureza, ordem natural da vida.   Sábios como Cícero entendem que “devemos nos contentar com o tempo que nos é dado viver, seja ele qual for! Uma existência, mesmo curta, é sempre longa o suficiente para viver na sabedoria e na honra”.

Vida boa e feliz   é aquela construída em harmonia com natureza, que respeita seus próprios ciclos, que não trava uma luta inglória contra a dinâmica do envelhecimento.

   Julgo oportuna a seguinte observação: o alargamento da vida é algo fora do nosso controle. A sustentabilidade da leveza do ser é algo que depende de nós mesmos. Quem se dispuser a lutar, um caminho que me parece consistente, é dado a nós por sábios como Cícero. Construir uma vida boa e feliz requer sabedoria de aceitar nosso próprio destino. 

4

A espiritualidade laica

Entende Luc Ferry que a espiritualidade laica procura resguardar a herança espiritual das grandes religiões sem, no entanto, usar essas como instrumento catalizador do ser feliz. Ao contrário disso, a espiritualidade, que conduz uma vida feliz, é possível de ser obtida de forma racional.

Um dos grandes dilemas do ser humano é o da hora da morte. Para os que seguem os ditames da bíblia, os religiosos, esses encaram esse momento de forma serena e equilibrada.

O que está por vir será sempre melhor do que aquilo que se viveu. Quem pensa e age assim enxerga a morte como uma espécie de vida feliz junto ao Deus pai.

Por outro lado, Luc Ferry entende que essa mesma serenidade, na hora da morte, pode ser obtida por meio da espiritualidade laica, construída racionalmente ao longo da vida. 

Creio que ficou claro os dois possíveis caminhos que o ser humano dispõe para enfrentar a hora da morte de maneira serena: o primeiro desses caminhos passa pela fé no criador. O segundo, passa pela racionalidade construída aqui mesmo na Terra.

É oportuno enfatizar, portanto, que a vida feliz tem um denominador comum entre esses dois caminhos: o da espiritualidade religiosa e o da espiritualidade laica. E, aqui, vai um depoimento pessoal.

 Cresci frequentando uma igreja Batista dentro dos valores bíblicos passados de pai para filho. Creio num ente superior. Portanto, rejeito a espiritualidade laica. Entretanto, essa rejeição não me impede de que eu possa reconhecer o poder da filosofia como elemento transformador. É possível, por meio da razão, ser feliz neste mundo. Quanto ao outro mundo, acredito que a fé remove montanhas.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, Mestre em energia pela Unicamp. É autor de 8 livros relacionados aos temas energia, economia, política e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.

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