Retrato de uma jovem em chamas: Marianne e Héloïse como Orfeu e Eurídice

Nycolle de Paula Borges

Especial para o Jornal Opção

A construção de um romance sáfico em pleno século XVIII inevitavelmente carrega consigo todo o peso e a dor da proibição do amor entre duas mulheres.

Uma artista ministra uma aula em seu ateliê para alunas que a estão pintando, enquanto posa frente a um fundo azul e lhes dá instruções de como representar seus traços com mestria. Seu vestido azul marinho corrobora para seu tom melancólico, que se acentua quando repara em um quadro no fundo da sala: “Quem o colocou ali?” Uma das alunas levanta a mão hesitante e percebe que não deveria ter pego a pintura do depósito. A professora e também autora do quadro é Marianne (Noémie Merlant), uma jovem pintora independente que diz ter feito a obra há um tempo. No quadro, um céu nublado iluminado pela luz branca da lua. No centro, cercada de escuridão, há uma moça também de vestido azul que olha pra trás enquanto a barra de sua vestimenta pega fogo.

“Retrato de uma jovem em chamas” é o nome da pintura e também do filme francês dirigido e produzido por Céline Sciamma em 2019, vencedor da Palma Queer e do Prêmio de Roteiro no Festival de Cannes. Como uma boa produção francesa, a obra se apoia na estética silenciosa, intimista e atenta aos detalhes para criar uma atmosfera de descobertas de sentimentos intensos.

 A narrativa se passa em 1770 em uma ilha francesa, quando Marianne é contratada para pintar o retrato de Héloïse (Adèle Haenel), para que sua mãe leve o quadro para seu futuro marido na Itália. No entanto, Héloïse é contra o casamento e não aceita posar para nenhum artista. Sua mãe, convencida de que o matrimônio resultaria na sobrevivência financeira da família, instrui Marianne a se apresentar como companheira de passeios de sua filha, para poder lhe observar durante o dia e pintar seu retrato à noite.

Céline Sciamma: diretora e roteirista de Cinema | Foto: Divulgação

O processo metafórico da apreensão do corpo, dos pensamentos, inquietações, dores e desejos de Héloïse resulta em uma pintura sublime, e, sobretudo, em um amor ardente entre a artista e a musa inspiradora, dentro de uma relação dinâmica e equalitária entre parceiras que criam sua arte juntas.

A construção de um romance sáfico em pleno século XVIII inevitavelmente carrega consigo todo o peso e a dor da proibição do amor entre duas mulheres. Em “Retrato de uma jovem em chamas”, a complexidade do dilema entre escolher se privar de viver um amor pleno ou vivê-lo sabendo de sua impossibilidade de durar é genialmente trabalhada em forma de reinterpretação do mito de Orfeu e Eurídice. A referência ao clássico grego é constante durante toda a obra, presente tanto na estrutura da narrativa quanto em aspectos visuais e recursos estéticos.

Orfeu e Eurídice, pintura de Edward John Poynter

No mito grego, o pai da lira vive uma tragédia poética ao perder sua amada Eurídice duas vezes, sendo uma primeira morte literal pouco após o casamento e uma segunda quando Orfeu infringe a imposição de Hades de não olhar para trás, quando este tenta resgatar Eurídice do submundo. No filme, as personagens se reúnem para ler o mito enquanto bebem — submersas em um conforto e liberdade que é apenas possível em um recorte no espaço-tempo em que não existem homens — e abrem a discussão sobre os motivos de Orfeu ter olhado para trás. Para Marianne, o músico escolheu a lembrança de Eurídice ao fazer a escolha do poeta, e não do amante. Já para Héloïse: “Talvez tenha sido ela que disse: ‘vire-se’”.

O ímpeto arrebatador das amantes se aproximarem e se deliciarem em seu romance impossível frequentemente encontra barreiras, como na cena mais metafórica do filme, onde Héloïse tenta chegar perto de Marianne e esbarra seu vestido em uma fogueira, lutando para permanecer imóvel e ignorar a chama. Céline Sciamma tira proveito do fogo para aludir ao elemento que aquece, dá vida, mas ao mesmo tempo queima e destrói, indicando o presságio de um amor ardente que há de vir, mas que também há de queimar.

A narrativa gloriosa explora momentos no qual Marianne de fato assume o papel de artista e Orfeu, e parece escolher ganhar a imagem de Héloïse, mesmo que isso significasse perdê-la ao olhar para trás – e em alguns casos, literalmente olha. Nada é capaz de preparar o expectador para a cena final do filme, onde somos nós que ardemos em chamas e – definitivamente – não resistimos a vontade de olhar para trás.

Nycolle de Paula Borges é acadêmica de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Goiás.

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