Solidariedade não pode esconder que novas tragédias vão bater à porta de Porto Alegre e outras cidades

O jornalismo, ao menos neste momento, tem de discutir a questão principal sobre a tragédia do Rio Grande do Sul — Porto Alegre —, em decorrência das chuvas persistentes e em grande volume que gestaram a cheia do Rio Guaíba: é preciso salvar vidas tanto de pessoas quanto de gatos, cachorros, cavalos, gado etc.

Cuidar das pessoas, dando-lhes uma morada provisória, onde tenham comida e roupas — o mínimo de conforto —, além de assistência médica, é essencial.

O apoio de todo o país, numa solidariedade irmanada e universalizada, é, por certo, um refrigério para os gaúchos. Unidos, de Norte a Sul, do Oiapoque ao Chuí, brasileiros enviam recursos financeiros, alimentos, roupas e carinho.

A solidariedade é, em certa medida, uma das maiores fontes de apoio — inclusive psíquica. A mensagem, como certamente é absorvida pelos moradores do Rio Grande Sul — Estado que organizou lutas separatistas —, é uma só: “Vocês não estão sós. Nós estamos com vocês”. Pode soar piegas, aos apóstolos do realismo, mas é verdadeiro, sobretudo empático.

Há, claro, os oportunistas de sempre, e não apenas no campo político. Mas a maioria — e vale o pleonasmo: maioria absoluta — comporta-se de maneira decente. Brasileiros de todos os rincões — inclusive do próprio Sul — estão enviando alguma ajuda para os sulistas.

Toda tragédia é, digamos, feia. Mas há uma beleza cercando-a e reduzindo sua fealdade: a solidariedade. O apoio a quem perdeu (quase) tudo, às vezes de parte de quem tem pouco, é altamente positivo. Até o cuidado com gatos e cachorros denota que os seres humanos não estão se colocando — como quase sempre fazem — como centro da vida na Terra. Eles estão se preocupando com todas as vidas. É um diferencial importante.

Inundação em Porto Alegre | Foto: Reprodução

Há uma campanha para que as pessoas não enviem roupas rasgadas e sujas. Porque, mais agasalhados — com roupas limpas e preservadas —, os indivíduos podem se sentir melhor. Mas vale pensar a respeito: quem enviou uma roupa com algum rasgo pode ser uma pessoa pobre. Pode ter enviado uma roupa de uso próprio.

O momento é mesmo de cuidar das pessoas, física e mentalmente (a presença de assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras faria bem. O CRP do RS já está cadastrando psicólogos que queiram atender gratuitamente). Mais tarde, se fará a reconstrução — que terá de ser a fundo perdido. O governo federal e o governo do Rio do Sul — com a possibilidade de contar com o apoio da iniciativa privada — terão de irmanar-se para a reconstrução da cidade, do habitat (e do bem-estar) das pessoas.

Não importa o custo, os governos, federal e estadual, têm o dever de contribuir, de maneira decisiva, para reconstruir as casas e a infraestrutura da cidade. Tem de ser a fundo perdido e o atendimento precisa ser universalizado — independentemente de classes sociais.

Em seguida, é preciso ter um olhar especial para a psique das pessoas. É crucial ter uma escuta pública para elas. A perda de parentes e amigos — além dos objetos pessoais, inclusive fotografias (a história de cada um), livros e jardins — fragmenta, de alguma maneira, a vida dos indivíduos. Restaurar a história de cada um, se isto é possível, é, quem sabe, muito mais difícil do que construir ou reconstruir uma casa, um edifício, uma rua ou uma ponte.

Porto Alegre: cheia do Rio Guaíba | Foto: Reprodução

Sabe-se que, no período da “reconstrução”, a imprensa nacional tende a “esquecer” os gaúchos (novas tragédias galvanizam o interesse do jornalismo). Mas não deveria. Pois será uma fase muito difícil, inclusive, possivelmente, com demandas judiciais.

Jornalismo participante e empático

Jornais, revistas, sites e emissoras de televisão e rádio de todo o país estão de olho em Porto Alegre. Direta ou indiretamente, estão lá para reportar, da maneira mais objetiva possível, os acontecimentos. Mas não só.

Sobretudo as emissoras de televisão, como a Globo e GloboNews, estão contribuindo para mobilizar o país, reforçando a solidariedade.

Ao mesmo tempo que cobre os acontecimentos — as tragédias pessoais e coletivas —, com relatos sobre as pessoas, a respeito de como escaparam e como estão sobrevivendo, além de mostrar heróis anônimos dedicados tanto a salvar pessoas quanto a apoiar os sobreviventes, o jornalismo está se comportando de maneira participante.

Jornalismo participante no sentido de ampliar a solidariedade e cobrar mais ação das autoridades e da sociedade.

A Tristeza, pintura de Thaís Coelho

Ao enviar William Bonner, o âncora do “Jornal Nacional”, e Marcelo Cosme, do “Em Pauta”, a cúpula da Globo mostra sensibilidade. William Bonner, em especial, é a cara da Globo para o país.

O fato de William Bonner ter ido para Porto Alegre, dando as notícias direto do front — como um verdadeiro repórter —, indica o compromisso da Globo tanto com uma descrição mais acurada do que está acontecendo quanto colaborando para ampliar a solidariedade nacional aos gaúchos.

Aqui e ali, ouve-se que o jornalismo da Globo se tornou piegas. Trata-se de uma “crítica” não responsável. Uma cobertura humana, na qual a repórter Graziela Azevedo chama uma mulher pelo nome e a abraça, é bem-vinda. A sra. é vítima de enchentes anteriores.

O sempre composto William Bonner e o mais emotivo Marcelo Cosme se mostram bem abatidos, com olhos quase de súplica. Como se pedissem a Deus — ou aos deuses — clemência para os gaúchos. Há um sentimento de impotência generalizada. O que melhora o ambiente, por assim dizer, é a solidariedade do país e na própria Porto Alegre.

Mundo humano é predatório

Pode-se sugerir que o ser humano é seu próprio asteróide? Cientistas dizem que, no momento, vive-se a sexta extinção. O vetor da destruição de centenas de espécies são os seres humanos.

Mesmo quando não matam diretamente, ao avançarem sobre a Terra, com mais pessoas e suas construções, são responsáveis pelo encolhimento do habitat de outros animais — como onças, cobras, antas, tamanduás, raposas, emas, seriemas, araras, lobos, cachorros do mato etc.

Jornais e emissoras de televisão dão notícias de que onças estão “invadindo” bairros e o Corpo de Bombeiros — com sua eficiência habitual — é convocado para capturá-las. É muito raro um meio de comunicação discutir a sério a questão — concentrando-se mais no sensacionalismo, no jornalismo-espetáculo. Poderia ouvir cientistas a respeito da redução do habitat dos animais, como onças e lobos guarás. Quem é, de fato, o invasor? Por que o ser humano tem direito a todos os espaços e os demais animais devem ficar circunscritos a zoológicos e reservas ambientais, como o Parque Nacional das Emas (por sinal, bem cuidado pelo ICMBio. O biólogo Kennedy Borges e seus colegas fazem um trabalho eficiente de preservação das espécies animais e vegetais) e o parque da Chapadas dos Veadeiros?

O Rio Formoso corre dentro do Parque Nacional das Emas. Suas águas são limpas e é possível ver o fundo do rio. Um dos motivos é que suas margens estão preservadas, com vegetação espessa, que impede o assoreamento. As minas d’água estão preservadas e, por isso, o rio não seca, mesmo em período de estiagem.

Vários rios do país não têm a mesma “sorte”. Longe de serem protegidos por árvores, espécies de guardiãs, estão cercados por variadas construções, como edifícios, casas e ruas asfaltadas. Por mais que se coloque alguma proteção, a fúria da natureza um dia vai cobrar a fatura, como agora no Rio Grande do Sul.

Com construções e pavimentações asfálticas mais distanciadas, com acréscimos de (mais) áreas verdes, as enchentes podem até ocorrer, mas certamente seriam menos trágicas e letais. Mas a especulação imobiliária, que, embora criticada, é aceita por quase todos, não se preocupa com a possibilidade de tragédias. Quanto mais ganhar dinheiro, no presente, mais uma vida luxuosa terão os especuladores.

Nos jornais e nas emissoras de televisão há uma crítica generalizada aos governantes, aos políticos. Certo, há (falta de) responsabilidade por parte de governantes, que toleram planos diretores que chegam prontos às câmaras municiais das cidades. Não são elaborados por técnicos que pensam numa cidade para todos, nem mesmo pelos prefeitos e vereadores. Em regra são elaborados e mudados a bel-prazer pelo setor imobiliário.

Vive-se numa sociedade predatória e os seres humanos são, mais do que vítimas, agentes da própria destruição. O modelo predatório não tem vida própria, como se fosse um alien. Nós todos — sim, todos — somos agentes da destruição. Nós criamos o sistema predatório — cada vez mais acelerado — e, mais do que os demais animais, usufruímos dele.

Então, insistindo, somos sujeitos — e não objetos (ou vítimas) — de nossas próprias tragédias, ao menos em parte (a crise climática não é uma invenção “única” da natureza). Em seguida à reconstrução de Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul, como não se pensa em soluções estruturais e mais, digamos, “verdes”, se terá outras enchentes e outras tragédias (e não só no Sul). É o eterno retorno da falta de compromisso dos setores humanos com Gaia.

Súplica Cearense

Luiz Gonzaga

Oh! Deus, perdoe este pobre coitado

Que de joelhos rezou um bocado

Pedindo pra chuva cair sem parar

Oh! Deus, será que o senhor se zangou

E só por isso o sol arretirou

Fazendo cair toda a chuva que há

Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho

Pedi pra chover, mas chover de mansinho

Pra ver se nascia uma planta no chão

Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe

Eu acho que a culpa foi

Desse pobre que nem sabe fazer oração

Meu Deus, perdoe eu encher os meus olhos de água

E ter-lhe pedido cheinho de mágoa

Pro sol inclemente se arretirar

Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno

Desculpe eu pedir para acabar com o inferno

Que sempre queimou o meu Ceará

(Composição: Gordurinha/Nelinho)

Súplica Cearense com Luiz Gonzaga e Fagner

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