Cara Paz, de Lisa Ginsburg, aborda a forte ligação de duas irmãs, órfãs de pais vivos

Mariza Santana

Dramas familiares rendem bons romances. A história das irmãs Madalena e Nina, abandonadas pela mãe Glória ainda crianças e criadas por um pai ausente, é o enredo do livro “Cara Paz” (Nós, 256 páginas, tradução de Francesca Criceli), da escritora italiana Lisa Ginsburg. Na realidade, o título do livro deveria ter sido traduzido para o português como “Carapaça”, já que na língua italiana a autora usa um jogo de palavras, sendo que “carapace” tanto pode significar carapaça, como cara paz. Esse recurso literário é explicado pela tradutora, mas fica claro que a protagonista, no caso Madalena, ou simplesmente Maddi, na condição de irmã mais velha, criou para si uma carapaça para se proteger dos problemas familiares.

“Cara Paz” é narrada por Maddi, que inicia demonstrando o desejo de retornar a Roma, pois já adulta, casada e mãe de dois filhos, mora há duas décadas em Paris. A partir daí ela rememora sua infância, marcada pelo abandono da mãe, de origem argentina, que desgostosa com o casamento, deixa a família para viver com um conterrâneo. O pai das meninas, Sebastiano, ou simplesmente Seba, é fotógrafo de casamentos e não consegue superar o sofrimento pela ausência da esposa. Assim, eles se mudam para Roma, mas Seba fica mais tempo distante do lar, no exercício da profissão, e acaba montando residência também em Milão. A visita às filhas na capital italiana é esporádica, resumida a fins de semana e ele se torna praticamente um estranho.

Lisa Ginzburg: escritora italiana, neta de Natalia Ginzburg | Foto: Barbara Ledda

Para cuidar de Madi e Nina, Seba contrata uma espécie de governanta, a francesa Mylène, que ensina as garotas o amor pelo esporte, como fonte de liberação de tensões e angústias. O ponto forte do romance, entretanto, é a forte ligação afetiva entre as duas irmãs, apesar de terem temperamentos totalmente opostos. Madalena é centrada, tímida, equilibrada. Nina é explosiva, instável emocionalmente, muitas vezes egocêntrica e manipuladora. Os sentimentos desse relacionamento fraternal é a mola propulsora do livro, a própria razão de ser da narrativa, que é feita com muita sensibilidade.

Nina não sabe viver sem Madi, assim como ocorre com sua irmã mais velha em relação à caçula. Mesmo quando elas voltam a ter contato com a mãe, por meio das visitas regulares estipuladas pelo juiz responsável pelo divórcio dos pais, sabem que só podem contar uma com a outra.

“Somos órfãs de pais vivos”, resume a protagonista, com um ponto de tristeza. Mas chega a maioridade de ambas e os caminhos das irmãs se bifurcam. Madi vai para Paris, onde conhece o marido e cria sua própria família. Nina segue em Roma, até viajar para Nova York, local onde encontra seu porto-seguro. Mas nada impede que a forte ligação das irmãs se mantenha, reforçada por mensagens e ligações telefônicas interoceânicas.

“Cara Paz” reforça a importância da resiliência para se sobreviver à desintegração familiar, e como situações como essa moldam o caráter e o futuro das pessoas. Sem Mylène, Madalena e Nina teriam ficado à deriva, mas conseguiram seguir suas vidas. O forte desejo da protagonista de voltar a Roma e revisitar antigos lugares da infância e adolescência é realizado, com um acontecimento imprevisto. Não vou adiantar o final, mas creio que a autora quis dizer que a protagonista finalmente conseguiu romper sua carapaça. Será isso mesmo? Fica a critério de cada leitor.

A força da fantasia na literatura

Lisa Ginzburg nasceu em 1966, em Roma. É tradutora, filósofa e autora de diversos romances, além de biografias e livros de ensaio. Com “Cara Paz” foi finalista, em 2021, do Prêmio Strega, um dos mais prestigiosos da literatura italiana.

A escritora italiana esteve na edição 2024 do Festa Internacional Literária de Paraty (Flip), em outubro. Junto com a portuguesa Ana Margarida de Carvalho, participou da mesa-redonda do evento denominado “A paz e o gesto”. Com mediação de Adriana Ferreira da Silva, o bate-papo das duas escritoras abordou temas como solidariedade feminina, a força da fantasia em suas obras e a paixão de ambas pelo Brasil.

Mariza Santana é crítica literária. Email: [email protected]

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