A história de Djó, o Cão Herói do romancista Ilya Ehrenburg

Vítimas inocentes das guerras que não provocaram, animais não costumam ocupar lembranças ou estatísticas dos conflitos. Não deveria ser assim. Na Primeira Guerra Mundial, cerca de 8 milhões de cavalos morreram de exaustão, fome, explosões de minas, obuses ou disparos de armas portáteis. Era uma guerra pouco mecanizada, e a tração predominante era a animal.

Na Segunda Guerra, embora os motores fossem responsáveis pela maioria dos deslocamentos, em certas condições de terreno nada substituía os ginetes. E ali também cavalos morreram aos milhões, pagando com o sofrimento e a vida sua devoção ao homem. Cães foram muito usados nas guerras e seu destino não foi menos cruel. Serviço de sentinela, detecção de minas e transporte de mensagens em percursos perigosos estavam  entre as missões suicidas desses melhores amigos do homem. O Exército Britânico utilizou milhares de cães na Primeira Guerra.

Ilya Ehrenburg (1891-1967), nascido na Ucrânia e de origem judia, foi poeta, jornalista e escritor destacado na União Soviética, tendo recebido o  Prêmio Lênin da Paz em 1948. Um bom romancista (escreveu O segundo dia da  criação e Moscou não crê em lágrimas, entre outros romances publicados no Brasil), contista e poeta com mais de 100 livros publicados, ficou famoso mesmo foi por suas crônicas como correspondente de guerra na frente de batalha. Foram as 2 mil crônicas que escreveu, incentivando os combatentes contra a invasão nazista, que o fizeram premiado na União Soviética, livraram-no das purgas de Stalin contra intelectuais e até fizeram com que Hitler determinasse seu enforcamento imediato, se fosse capturado. A crônica em que presta homenagem ao cão Djó, por certo baseada em fato real por ele presenciado no front, é uma pequena obra prima da literatura.

Ehrenburg começa por apresentar o cão: Já conhecia Djó antes da guerra. Era um cão novo que vagueava, língua pendida, pelas ruas geladas do bairro, para lá de Moscou. Seus ancestrais não se distinguiam pelo orgulho da casta: Djó tinha as patas curtas e uma cabeça eriçada de uma grossura anormal. “Onde descobriste semelhante bicho?” – implicavam com Maltseff, seu dono… Djó sabia que era preciso não perturbar Maltseff quando estava à mesa… Em compensação, quando Maltseff se levantava, Djó, cheio de entusiasmo, punha-se a descrever círculos no quarto … Maltseff ensinara-lhe a levar o jornal  ao velho Gniédine, que morava na rua vizinha. “Dir-se-ia um correio canino”, dizia Gniédine, rindo. Maltseff calava-se: sabia que ninguém compreenderia seu afeto por esse cão de patas tortas e pelo hirsuto. Veio a guerra e Djó encontrou-se, juntamente com seu dono, nas florestas do lado de Smolensk.

E Ehren

burg descreve o impacto do bombardeio nazista, com toda sua violência, sobre os homens e os animais: Depois, tudo foi sacudido. A terra elevou-se para o céu ,,, Maltseff estava deitado na lama e isso assustou particularmente Djó: sentiu que qualquer coisa terríivel se passava. As pessoas olhavam para o céu. Djó levantou também a cabeça, e não se contendo mais, pôs-se a uivar. Quando passou o bombardeio, Maltseff pôs-se a rir: “Então, velho amigo, tiveste medo?” Ao ver a cara alegre do dono, Djó acalmou-se; contente e envergonhado, pôs-se a bater com a cauda no chão. Mas o tumulto recomeçou… Ele tinha vontade de fugir, mas continuou deitado, cabeça junto ao chão, e não tirava os olhos de seu dono. Fugir? Não, Djó não é um covarde e seu dono disse-lhe: “Silêncio!” Apesar disso, ouviam-se gritos. Compreendeu que a vida mudara e que não teria mais a carpete onde dormia …

A mais violenta das invasões, onde cerca de vinte milhões de pessoas perderam a vida e um número incalculável de outras sofreram danos irreparáveis continuava. Mas o ímpeto nazista arrefecia perante o ânimo forte dos invadidos. Continua o autor o pequeno episódio de bravura, parte de uma bravura muitas vezes maior:

Djó tinha mudado; invariavelmente exibia um ar preocupado. Tinha, depois de muito tempo, se acostumado ao fogo de artilharia. Tinha aprendido a rastejar em terreno descoberto, a esconder-se nos buracos das bombas… Dormia na tenda e certa noite  foi acordado por Maltseff que o acariciava. Na véspera um de seus homens dissera: “Detê-los-emos algum dia?” Maltseff sabia que se podiam deter os alemães, mas essas palavras de covardia tinham lhe ficado na cabeça o impediam de adormecer. Djó compreendeu o que significava essa carícia avara e negligente e apoiou o focinho de pelo ralo contra a mão de Malltseff … Maltseff estava calmo exteriormente, mas tudo nele fervia. As munições estavam no fim e era preciso abrir fogo sobre a estrada de Krouglovo.

O rádio não funcionava, pois os cabos estavam rompidos. Maltseff tentara enviar dois homens a Jouravliovk; um morrera e outro voltara a rastejar, ferido … E num momento Maltseff compreendeu: era preciso enviar Djó… Na sua coleira fixou um bilhete: “As munições estão acabando. Temos até as dezesseis horas. Fogo na estrada de Krouglovo, à esquerda do pequeno bosque”. Disse a Djó: Corre! Mas o cão não compreendia… Deu-lhe então um velho jornal deixado ali. Djó segurou o jornal entre os dentes e olhou. Isso ele entendia: era sua missão, como sempre fizera, entregar o  jornal. Mas onde? Maltseff apontou-lhe: “Corre”. Djó partiu a rastejar. Lembrava-se bem do caminho para Jouravliovk e rastejava em zig-zag como aprendera com Maltseff. Subitamente, sentiu uma dor violenta. Uma mina despedaçara suas patas traseiras. Mas era preciso levar o jornal; num esforço continuou rastejando, remando a neve com as patas da frente. Chegou a tempo – o posto de comando mudava de lugar, e o comandante, lendo o bilhete, e vendo que era de Maltseff, não perdeu tempo e tomou as providências pedidas… Ninguém dava atenção a Djó, que ficou só, na isba… a sede o torturava e passava a língua seca nas patas feridas. Mas Maltseff estava feliz. Quando viu que metralhavam a estrada de Krouglovo, compreendeu que Djó cumprira a missão.4

E Ehrenburg narra o final, tão triste quanto significativo da relação que existe, desde tempos imemoriais, entre o homem e seu cão, da fidelidade canina, lição desse animal, que o homem nunca parece bem apreender:

Conseguiram expulsar os alemães da estrada de Krouglovo. Quando a noite chegou, Maltseff dirigiu-se a Jouravliovk; pensava que o posto de comando continuava no mesmo lugar. Na isba vazia, viu Djó, que tomou consciência e quis saltar, mas sequer conseguiu levantar a cabeça. Só sua cauda se agitou, a custo, e tudo o que continha sua alma de cão exprimiu-se nos olhos que levantou para Maltseff, que se emocionou. Abaixou-se, acariciou Djó; calado, acariciou-o uma vez mais e tirando o revólver do estojo, disparou. Deixou a isba sem olhar para trás. Precisava encontrar o posto de comando.

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