Crise na aviação mundial: escassez de pilotos, peças e desafios pós-pandemia

A aviação mundial enfrenta uma crise sem precedentes, marcada pela escassez de pilotos e a falta de peças essenciais para a manutenção das aeronaves. A pandemia global, que afetou diretamente o setor, acelerou a aposentadoria de muitos profissionais e dificultou o treinamento de novos pilotos.

Além disso, as rígidas normas de segurança e a crescente complexidade dos sistemas aeronáuticos exigem anos de experiência, tornando o déficit de mão de obra ainda mais grave. Com a retomada das viagens e a demanda por transporte aéreo atingindo níveis recordes, o cenário se torna cada vez mais desafiador.

Ao mesmo tempo, a escassez de peças de reposição tem afetado a capacidade das companhias aéreas de manter suas frotas operando com segurança e eficiência. A interrupção das cadeias de fornecimento durante a pandemia e o aumento dos preços de matérias-primas afetaram tanto a produção quanto a entrega de componentes essenciais.

Embarque de passageiros l Foto: Reprodução

As empresas têm enfrentado atrasos em manutenções programadas, resultando em aeronaves fora de operação por períodos mais longos. Esse problema agrava ainda mais a situação, pois, sem as peças necessárias, as companhias aéreas não conseguem atender à crescente demanda por voos.

Esse cenário crítico gera um dilema para a aviação mundial: como conciliar uma alta demanda por viagens aéreas com a escassez de recursos humanos e materiais? As consequências são notáveis, com aumento de preços de passagens e cancelamentos de voos, impactando tanto consumidores quanto empresas.

A solução exige uma colaboração entre governos, empresas aéreas e fabricantes para investir em treinamento de pilotos e em soluções inovadoras para garantir o fornecimento contínuo de peças e a sustentabilidade do setor. O futuro da aviação depende da capacidade de resolver essa crise, garantindo segurança, eficiência e acessibilidade para todos.

Acidentes aéreos no Brasil em 2024

De acordo com o Jornal o Globo, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), responsável por fiscalizar o setor aéreo no Brasil, opera com quase um terço dos seus cargos vagos, em um momento em que as mortes em acidentes aéreos bateram recorde em 2024. Atualmente, apenas 1.237 dos 1.755 cargos previstos estão preenchidos, e a agência busca autorização do governo para novas contratações.

O número de vítimas em acidentes aéreos subiu 95% em relação a 2023, totalizando 150 mortes até o dia 25 de dezembro. Entre os casos, está a queda de um avião de pequeno porte em Manicoré (AM), que vitimou duas pessoas. Apesar do déficit de 518 servidores e mudanças organizacionais, a Anac afirma que suas alterações não comprometeram a capacidade operacional, enquanto especialistas apontam impactos negativos na fiscalização e na segurança do setor.

Queda do avião da Voepass 2283 l Foto: Reprodução

O acidente aéreo em Gramado, que matou 10 pessoas, foi o segundo maior do Brasil em 2024 e o mais grave envolvendo aviões de pequeno porte. O número total de mortes em acidentes aéreos no ano chegou a 148, representando um aumento de 92% em relação a 2023 e o maior registro desde o início da série histórica do Cenipa, em 2014.

A tragédia foi o 41º acidente com vítimas em 2024, sendo o sétimo com pelo menos cinco mortes. São Paulo liderou em ocorrências fatais (11 casos), e a maioria dos acidentes envolveu voos de aviação privada. A principal causa identificada foi “perda de controle em voo”, com 13 casos, seguida por “falha de motor” em sete acidentes, enquanto 10 continuam sob investigação.

Entre os acidentes aéreos brasileiros mais notáveis estão:

  • Voo Voepass 2283: Em 9 de agosto de 2024, um ATR 72-500 operado pela Voepass caiu em Vinhedo, São Paulo, resultando na morte de todas as 62 pessoas a bordo. Investigações preliminares sugerem que o acúmulo de gelo na aeronave pode ter sido um fator contribuinte.
  • Queda de Piper PA-42 em Gramado: Em 22 de dezembro de 2024, um Piper PA-42 Cheyenne caiu em Gramado, Rio Grande do Sul, pouco após a decolagem, colidindo com estruturas na cidade turística. O acidente resultou na morte de todas as 10 pessoas a bordo e feriu 17 pessoas em solo.
  • Acidente de helicóptero em Ouro Preto: Em novembro de 2024, um helicóptero caiu em Ouro Preto, Minas Gerais, durante uma missão de resgate, resultando na morte de seis pessoas, incluindo quatro bombeiros militares, um médico e um enfermeiro.
Queda de Piper PA-42 em Gramado l Foto: Reprodução

Acidentes aéreos no mundo em 2024

Em 2024, 200 acidentes aéreos foram registrados no mundo, segundo levantamento do site Aviation Safety Network. Só no mês de dezembro, houve registros no Canadá, no Azerbaijão, Coreia do Sul e no Brasil. Relembre os principais casos.

Dentre os casos mais significativos, destacam-se:

Coreia do Sul
Em 29 de dezembro, um Boeing 737-800 da Jeju Air, que voava de Bangkok para Seul, saiu da pista ao pousar e colidiu contra um muro. O acidente resultou na morte de 179 pessoas.

Brasil
Em 11 de agosto, um ATR-72 da Voepass caiu em Vinhedo, São Paulo, durante um voo de Cascavel para São Paulo. Todas as 62 pessoas a bordo faleceram.

Queda de avião na Coréia do Sul l Foto: Reprodução

Cazaquistão
Em 25 de dezembro, um Embraer E190 da Azerbaijan Airlines, voando de Baku para Grozny, caiu próximo a Aktau, matando 39 pessoas.

Nepal
Em 24 de julho, um CRJ-200 da Saurya Airlines caiu logo após decolar de Katmandu, resultando na morte de 18 pessoas.

Canadá
Em 23 de janeiro, um avião da Northwestern Air caiu perto de Fort Smith, matando seis pessoas.

Especialista em aviação analisa desafios do setor durante a pandemia

O setor de aviação, que é um elo essencial na cadeia do turismo – a maior indústria global – enfrenta uma série de desafios. Para compreender melhor as complexidades da aviação brasileira e mundial, o Jornal Opção conversou com Ycarim Melgaço, professor de Ciências Aeronáuticas na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e pesquisador especializado em tendências de mercado, economia e gestão no setor de viagens e turismo.

Segundo Melgaço, a administração de uma companhia aérea é um “desafio enorme” devido às várias complexidades envolvidas. Ele destaca, por exemplo, o impacto da oscilação da moeda brasileira, que tem se desvalorizado, e o impacto do leasing de aeronaves, que é pago em dólar. “Quando a nossa moeda se desvaloriza, a maior receita das empresas aéreas, que vem de passagens vendidas em reais, já gera um problema significativo no caixa das companhias”, explica.

Ycarim Melgaço, professor de Ciências Aeronáuticas l Foto: Arquivo pessoal

O professor também chama a atenção para o fenômeno do “descasamento cambial”, uma situação contábil comum em empresas aéreas. “A receita em reais não acompanha a despesa em dólares, o que cria um descompasso financeiro”, afirma Melgaço.

Além disso, o especialista menciona outros fatores críticos, como as intempéries e mudanças econômicas nos países onde as companhias aéreas têm suas matrizes. Porém, o maior desafio nos últimos tempos foi a pandemia de Covid-19. “O impacto do Covid foi tremendo, pois as empresas aéreas têm planejamentos estratégicos de médio e longo prazo, e de repente, do nada, elas se viram com a necessidade de paralisar suas aeronaves”, relata.

De acordo com Melgaço, com a pandemia, as receitas caíram drasticamente enquanto as despesas permaneceram. “Você tem que parar os aviões, mas os custos continuam. A manutenção das aeronaves não pode ser interrompida, os motores precisam ser desligados de forma controlada, os pneus precisam ser mantidos, e os custos fixos continuam a pesar”, explica o professor.

Falta pilotos, diz especialista l Foto: Reprodução

A situação, que já era desafiadora antes da pandemia, se agravou com a crise. “Antes do Covid, não tínhamos um cenário favorável. A Latam, por exemplo, já enfrentava uma enorme dívida de cerca de 18 bilhões de dólares, antes mesmo de recorrer ao Chapter 11, a recuperação judicial nos Estados Unidos”, comenta Melgaço.

Embora a Latam tenha conseguido uma negociação favorável com seus credores durante a crise, o professor destaca que a pandemia afetou profundamente todas as empresas aéreas ao redor do mundo. “A Latam não é um caso isolado; todas as empresas aéreas enfrentaram a mesma dificuldade. O impacto foi global”, conclui.

A análise de Melgaço mostra que, além das dificuldades econômicas e financeiras, a capacidade de adaptação das empresas aéreas foi fundamental para enfrentar os desafios impostos pela pandemia.

Impactos pós-covid na aviação e no turismo

O setor de aviação e turismo ainda enfrenta os efeitos devastadores da pandemia de Covid-19. Segundo Ycarim Melgaço, “no período pós-Covid, enfrentamos uma situação drástica. Antes, os desafios já eram consideráveis, mas agora as circunstâncias se tornaram críticas.” O especialista destaca que as empresas foram obrigadas a revisar completamente seus planejamentos estratégicos de longo prazo, uma vez que a imprevisibilidade do futuro se tornou uma realidade.

Essa dificuldade em prever cenários foi bem discutida por Henry Mintzberg, renomado estudioso canadense de estratégia, que afirmou que planejar o futuro é uma tarefa extremamente complexa, sendo a pandemia um exemplo claro dessa imprevisibilidade.

Emirates é a empresa mais atrativa para pilotos l Foto: Reprodução

As empresas aéreas, em particular, tomaram decisões drásticas, como demissões em massa, para tentar sobreviver. A demissão de tripulantes, especialmente pilotos, trouxe desafios específicos, já que a formação desses profissionais é longa e cara. “A decisão de demitir pilotos se mostrou arriscada, pois, com a retomada do setor, a demanda por profissionais qualificados cresceu rapidamente”, explica Melgaço.

Com o fim do confinamento, o setor de aviação foi surpreendido pela explosão da demanda reprimida, mas as empresas estavam despreparadas para atender a essa demanda. A falta de tripulação, aeronaves e peças gerou um cenário caótico para as companhias aéreas.

O caso da Gol e os impactos na frota

Um exemplo claro desse caos foi a situação da Gol Linhas Aéreas, que, antes da pandemia, tinha uma estratégia de operar com aeronaves de um único fornecedor, a Boeing. A empresa planejava modernizar sua frota, substituindo os modelos 737-700 e 737-800 pela nova geração 737 MAX, mas problemas enfrentados pela Boeing, incluindo falhas e suspensões na produção, atrasaram as entregas. A Gol, que já havia preparado suas aeronaves antigas para devolução aos lessores, precisou reverter essa decisão e reutilizar os aviões antigos, refletindo o caos enfrentado pelas empresas aéreas globalmente.

Cenário global da aviação

Antes da pandemia, em 2019, o setor de aviação transportou mais de 4 bilhões de passageiros. Com a chegada do Covid-19, esse número despencou. A retomada começou em 2022 e, em 2024, os números já superaram os de 2019, mas a infraestrutura para atender à crescente demanda é insuficiente. Fabricantes como Boeing e Airbus não conseguem produzir aeronaves na velocidade necessária para suprir a demanda crescente.

Formação de pilotos

Nos Estados Unidos, o maior mercado de aviação do mundo, a situação também é crítica. Muitos pilotos se aposentaram durante a pandemia, agravando a escassez de profissionais. Empresas como American Airlines, United e Delta criaram suas próprias escolas de formação para suprir a demanda.

Escola de aviação l Foto: Reprodução

O pós-Covid revelou a complexidade do setor de aviação e turismo. Enquanto a demanda por viagens cresce exponencialmente, a falta de aviões e tripulação limita a capacidade das empresas de atenderem ao mercado. Esse cenário exige revisões constantes de planejamento e estratégias inovadoras para superar os desafios.

Em Goiânia, existem escolas específicas para a formação de pilotos, além de cursos superiores na área. Um exemplo é a Pontifícia Universidade Católica (PUC), que oferece o curso de Ciências Aeronáuticas, formando tanto pilotos quanto gestores de aeroportos. Esse curso é de grande relevância, pois é o único dessa natureza na região Centro-Oeste.

No entanto, há uma barreira significativa: o alto custo da formação de pilotos, que pode variar entre R$ 60 mil e R$ 70 mil. Isso dificulta o acesso de pessoas com menor poder aquisitivo, especialmente pela ausência de políticas públicas que incentivem essa formação. O governo federal poderia investir na abertura de novas escolas e na oferta de bolsas de estudo para ampliar o acesso à formação, atendendo a uma demanda crescente no setor.


A operação das companhias aéreas é complexa, afetada por fatores como problemas técnicos, condições climáticas adversas e limitações regulamentares. “Esses fatores podem gerar custos inesperados e desarticular a programação da empresa”, explica Melgaço. A falta de tripulação de reserva nos aeroportos menores também agrava os problemas, enquanto nos maiores, como o de Guarulhos, há equipes de stand-by para emergências.

Para o professor, o governo federal deve implementar políticas públicas integradas para enfrentar os gargalos no setor de aviação brasileiro. Melgaço defende a criação de incentivos para a formação de pilotos e técnicos, além de ações para melhorar a competitividade do setor e garantir a retenção de profissionais qualificados no país.

Gol linhas aéreas l Foto: Reprodução

Em relação à formação de pilotos, Melgaço ressalta que o processo para um Piloto Privado (PP) obter a licença pode levar de três a seis meses, se feito em tempo integral, e até um ano para quem estudar meio período. Já para se formar um Piloto Comercial (PC), o tempo pode variar de um a três anos, com a necessidade de acumular entre 150 a 250 horas de voo. Além disso, a licença de voo de linha aérea exige um mínimo de 1500 horas de voo.

Desafios da aviação brasileira
Melgaço enfatiza que a aviação enfrenta uma série de desafios no Brasil, incluindo a falta de incentivos públicos e o risco de perda de profissionais qualificados para o mercado internacional. “Muitos pilotos formados no Brasil optam por trabalhar no exterior, atraídos por salários em dólar, isenção de impostos e melhores condições de trabalho oferecidas por empresas como Emirates, Qatar Airways e outras grandes companhias”, diz.

Ycarim Melgaço explica que essas empresas recebem substancial apoio financeiro de seus governos, como os fundos soberanos provenientes do petróleo e gás, o que possibilita salários elevados e investimentos robustos. No Brasil, essa realidade é contrastante, com menor investimento governamental e infraestrutura insuficiente para atender à crescente demanda.

Mercados em crescimento
Para o professor, a aviação não enfrenta desafios apenas no Brasil. “Países como a China, por exemplo, estão experimentando uma explosão na demanda por pilotos, devido ao crescimento do poder aquisitivo e ao aumento dos voos domésticos”, relata. O professor avalia que a China pode superar os Estados Unidos como o maior mercado aéreo do mundo nos próximos anos, mas também enfrenta dificuldades na formação de profissionais suficientes.

Jumbo 747 da Boeing l Foto: Reprodução

Jornada de trabalho

O professor Ycari destaca o Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC – 117), que gerencia o risco da fadiga humana e foi aprovado pela Lei 13.475 de 2017. Esta legislação dispõe sobre a jornada de trabalho dos pilotos, estabelecendo um tempo mínimo de 11 horas para tripulação de um único piloto, 14 horas para tripulação composta e 18 horas para tripulação de revezamento.

“Podemos afirmar que a jornada de trabalho dos pilotos brasileiros é limitada a 90 horas a cada 28 dias e 900 horas por ano. Além disso, é obrigatória uma folga de dois dias por mês, sendo que uma delas deve ocorrer em uma sexta-feira ou sábado”, lembra.

De acordo com o professor, o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) é uma entidade bastante atuante, especialmente no setor de aviação comercial. Vale destacar que os aeronautas de empresas aéreas brasileiras, como Latam, Gol, Azul e Voepass (antiga Passaredo), geralmente estão sindicalizados.

Em 2022, explica Ycarim, o SNA aplicou um questionário abrangente a essa categoria. Os resultados, divulgados no início de 2023, foram baseados nas respostas de mais de quatro mil aeronautas, incluindo pilotos, comissários e mecânicos de voo.

Os resultados do questionário trouxeram à tona várias preocupações. Entre as principais reclamações estão:

  • Excesso de horas de trabalho e noites mal dormidas, especialmente entre os que atuam em voos noturnos;
  • O uso frequente de medicamentos para permanecer acordado ou induzir o sono, o que exige cuidados devido à potência desses remédios;
  • Alimentação inadequada, considerada precária em algumas situações, com destaque para críticas direcionadas a uma das empresas.

De acordo como o professor, o SNA realizou essa pesquisa devido às mudanças na regulamentação operacional, como o novo RBAC (Regulamento Brasileiro da Aviação Civil), que foi implementado sem uma discussão aprofundada com os aeronautas após o período da pandemia de Covid-19. Assim, o sindicato buscou obter um panorama real das condições enfrentadas pela categoria para poder atuar de forma mais assertiva.

“De maneira geral, a iniciativa do sindicato reforça sua atuação na defesa dos interesses e direitos dos aeronautas, além de promover a segurança dos passageiros”, conclui Ycarim Melgaço.

Leia também:

Coreia do Sul envia uma das caixas pretas do avião acidentado aos EUA e analisa dados de outra

Mísseis russos podem ter atingido avião que caiu no Cazaquistão

Avião cai no perímetro urbano de Gramado, no Rio Grande do Sul; veja vídeo

O post Crise na aviação mundial: escassez de pilotos, peças e desafios pós-pandemia apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.