A morte não encontrou Augusto dos Anjos morto

Conheço pessoas que dizem não sonhar, outras dizem não se lembrar do que sonharam. Já eu sonho todo dia. Quando acordo, trato de recapitular o que sonhei. Muitos me escapam da exatidão de como aconteceram. Há um, ocorrido há um bom tempo, de que lembro perfeitamente. Um sonho estranho. Maluco. Sonhei que eu era três Sinésios. Havia dois dentro do meu apartamento, um subalterno, a serviço de um outro, que estava no quarto, alegando que não queria ser incomodado por seu ninguém. Alguém tocou a capainha. O subordinado foi atender, e era o terceiro à procura do que estava dentro do quarto. O subalterno alegou que o Sinésio procurado não estava. O de fora acabou me vendo e disse que eu estava sim. O que rolou de conversa entre os três não aconteceu no sonho. A conversa poderia ser a luz na sombra desse estranho sonho.

Quando acordei, exclamei espantado: “que doideira”. Afinal que necessidade tenho eu de ser plural, a singularidade é o que me interessa. Devo confessar que, nesse meu desejo de singularidade, “tenho agachado para fora da possibilidade do soco, (…) sido cômico às criadas de hotel”. Essa pluralidade de eus no sonho não me gerou nenhuma inquietação no sentido de buscar alguma explicação freudiana e/ou jungiana. Talvez até haja. Fernando Pessoa, que citei nas aspas anteriores, falou de sua pluralidade: “Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim”. Vi em mim uma minúscula pertinência nesses “comigos de mim” do Pessoa.

De domingo para segunda-feira desta semana, sonhei que estava tendo uma conversa com Órris Soares: um escritor e dramaturgo paraibano, amigo e biógrafo do poeta Augusto dos Anjos. Ambos são paraibanos e nascidos no mesmo ano: 1884. Só que o poeta não foi longe na vida – morreu aos 30 anos – e Órris viveu 79. Este era irmão do avô do apresentador Jô Soares. Sobre o porquê do meu sonho, acho que ele deve ter acontecido devido à atenciosa leitura que fiz recentemente do livro “Eu”, de Augusto dos Anjos, no qual há um texto excelente de Órris, em que ele fala de sua amizade com o poeta e da poesia deste. A intelectualidade e sensibilidade literária de Órris me deixou impressionado. Augusto dos Anjos eu já conhecia. O livro em questão é de 1965, eu o comprei num sebo na rua 3, Centro. Bendita hora em que adquiri tal livro.

“Só a dor remove o homem do terra-a-terra esterilizante”. Sonhei que Órris me dizia isso (que está no livro) e ainda disse mais (que não consta na obra): “a morte não encontrou Augusto dos Anjos morto”. (Sabe muito bem você, altaneiro leitor, que gente morta em vida há demais por aí.) Era estranho, pois Órris, no sonho, tinha a cara de Augusto dos Anjos, estampada numa escultura do poeta na porta da Academia Paraibana de Letras, que tive o prazer de visitar em companhia do ilustre amigo e jornalista Valterli Guedes. Até foto ao lado da escultura eu fiz. O poeta ocupou a cadeira número 1 da entidade, que possui um memorial em homenagem ao bardo, que mandou o leitor escarrar na boca de quem o beija.

Para Órris, “a única força criadora e redentora é a dor”. A alegria, em seu entendimento, não possui esse poder: “só a dor possui a faculdade de aumentar, aclarando, essa manifestação imediata e poderosa de sensibilidade, enquanto a alegria, no seu rodopiar eterno de farsante, dançando ao som do pandeiro, a dispersa e anula”. A relação de amizade entre os dois teve início em 1900. “Feriu-me de chofre o seu tipo excêntrico de pássaro molhado, todo encolhido nas asas com medo da chuva”, conta ele sobre seu primeiro contato com o poeta.

A morte de Augusto dos Anjos deixou Órris consternado. Segundo ele, faltou ao poeta “atingir o marco da existência em que a criatura se apodera dos esplendores e riqueza de todas as aptidões mentais”. Seu pesar talvez seja pelo fato de o poeta ter sido seu amigo desde que ambos tinham 14 anos. Álvares de Azevedo – poeta da segunda geração do romantismo, também conhecida como “mal do século” devido teor sombrio e melancólico de sua poesia – morreu com apenas 21 anos, isso 50 anos antes de os dois nascerem. Outro poeta do romantismo que foi embora cedo (aos 24 anos) foi o baiano Castro Alves.

Falar em escola literária, para Órris, é conversa mole: “Isso de escolas é esquadria para medíocres”. A seu ver, no mundo da escrita literária só existe uma regra: “a do escritor apoderar-se da sua língua e manejá-la de acordo com o seu individualíssimo sentir”. Definindo o livro do amigo, ele diz: “O ‘Eu’ é Augusto, sua carne, seu sangue, seu sopro de vida, (…) na apoteose do seu sentir, nos alentos e desalentos de seu espírito”. O fingimento do poeta (e até do leitor) de que fala Fernando Pessoa no poema “Autopsicofrafia” não está dentro do entendimento de Órris: “Aquela amargura dos primeiros versos é a própria e singular amargura” de Augusto dos Anjos, que “não era o trivial psicólogo dos mexericos humanos”.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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