Narcas, de Deborah Bonello, revela história de mulheres que comandam tráfico de cocaína na América Latina

O crime organizado criou Estados paralelos na América Latina. No Brasil, as facções se constituíram em máfias poderosas, com exércitos próprios, e chefiam o tráfico de drogas e, mais recentemente, operam negócios legais (postos de combustíveis, distribuidoras de bebida, concessionárias de automóveis).

O Primeiro Comando da Capital (vai acabar tendo de mudar o nome para Primeiro Comando do País) e o Comando Vermelho se tornaram, além de máfias — similares às italianas (o PCC está conectado à máfia calabresa ’Ndrangheta) —, empresas multimilionárias. O PCC, sobretudo, é uma multinacional do gangsterismo.

Em São Paulo, e não só aí, o PCC infiltrou-se na Polícia Militar e na Polícia Civil, em larga escala. Policiais, até em posições de mando, e agentes civis se tornaram “funcionários” da máfia, para tanto recebendo “salários” e “bônus”. O esquema de proteção ao grupo criminoso, montado por policiais graduados, está sendo “desmantelado”. A rigor, nem se sabe a extensão do envolvimento “oficial” com o rei das facções. Pode ser maior do que se imagina.

Digna Asusena Valle e seus irmãos Luis Alonso e Miguel Arnulfo | Foto: Reprodução

Há mulheres participando do comando do PCC e do CV? Na liderança, tudo indica, não há. Mas, de fato, há mulheres associadas aos dois grupos criminosos. Porém, não na mesma extensão do que ocorre em outros países, como México e Honduras.

O livro “Narcas — A Ascensão Secreta das Mulheres nos Cartéis de Drogas da América Latina” (Planeta, 208 páginas, tradução de Carolina Cândida), da jornalista e pesquisadora Deborah Bonello, revela que a participação de mulheres na liderança do crime organizado não é ínfima.

Fala-se muito em Pablo Escobar (que já morreu), Joaquín “El Chapo” Guzmán (preso nos Estados Unidos) e Rafael Caro Quintero. Todos figuras centrais do tráfico internacional de cocaína e maconha. O que Deborah Bonello mostra é que, sim, há mulheres no comando do crime organizado ao sul da fronteira Estados Unidos-México.

Como assinala um texto da Editora Planeta, Deborah Bonello revela que há mulheres “por trás de cartéis violentos”. São “mentoras de esquemas de extorsão, mãos direitas do fluxo de cocaína de El Chapo para os Estados Unidos e matriarcas de grandes famílias do tráfico de drogas”.

Deborah Bonello: jornalista especializada em crime organizado na América Latina | Foto: Jonathan Borg

Deborah Bonello relata as histórias de Griselda, a “Madrinha” do império do tráfico em Miami, de Doña Digna, a líder do Cartel Valle, e de Guadalupe Fernández Valencia. Esta, a mais ligada a “El Chapo” Guzmán.

A matriarca Digna Asusena Valle

Li o primeiro capítulo do livro, “A matriarca”. Deborah Bonello conta a história do Cartel Valle ou Los Valle, cuja líder era uma mulher, Digna Asusena Valle, a ex-rainha do tráfico em Honduras.

A prisão de Digna Valle nos Estados Unidos desmantelou o Cartel Valle (mas o tráfico de Honduras para os Estados Unidos, via Guatemala, continua a pleno vapor). O DEA mapeou os negócios da família e suas relações com cartéis de outros países.

Digna Valle viajou para Miami, com o objetivo de acertar negócios, e acabou na cadeia, em 2014. Condenada, cumpriu a pena de sete anos e, libertada, mora em Boston. Está com 60 anos.

O PCC está abrindo uma série de negócios, porque precisa “lavar” e “investir” a imensa quantidade de dinheiro — reais, dólares e euros — que está recebendo. Por isso, diz-se, há os “homens limpos”, não participantes direto da máfia, que abrem negócios como postos de combustíveis, financeiras, concessionárias, construtores de imóveis.

Digna Valle: uma poderosa chefona implacável | Foto: Reprodução

O cartel da família Valle amealhou uma fortuna traficando drogas para os Estados Unidos. Com dinheiro sobrando, a matriarca Digna Valle financiou a construção de um imenso templo católico e o irmão bancou um imenso templo evangélico.

A realeza do tráfico de Honduras constituiu-se como um Estado paralelo, que atuava inclusive como instituição beneficente, daí o apoio dos pobres aos Valle.

Na cidade de El Espíritu, onde Digna Valle era a poderosa chefona, acima dos irmãos traficantes, para entrar era preciso de autorização de seus jagunços.

Honduras, frisa Deborah Bonello, “se tornou um importante país na rota do tráfico de drogas, que é produzida no Peru, na Bolívia e na Colômbia e transportada para os consumidores dos Estados Unidos”.

Na década de 2000, quando se deu o boom da cocaína, Digna Valle e sua família se envolveram com o tráfico internacional.
Deborah Bonello conta que “Digna… se orgulhava muito de suas obras sociais, como a qualidade e o tamanho da igreja e os ranchos de café que ela ajudou a financiar e gerenciar como parte do portfólio de negócios da família”.

Os Valle haviam se tornado “empresários” poderosos. Porém, assinala Deborah Bonello, “no começo da década de 2000, o governo americano confiou às autoridades hondurenhas a tarefa de desmantelar o clã Valle, entre outros, na esperança (irrealista) de interromper o fluxo de cocaína”.

Joaquín “El Chapo! Guzmán: narcotraficante do México | Foto: Reprodução

Toneladas de cocaína passavam por Honduras

Com a queda de Digna Valle, os irmãos Luis Alonso e Miguel Arnulfo Valle foram presos pela polícia hondurenha com apoio de agentes americanos. Os dois foram “condenados a 23 anos de prisão por tráfico de drogas” nos Estados Unidos.

Digna Valle, que não tinha o ensino médio, era uma mulher determinada. Luis Alonso e Miguel Arnulfo eram os mais violentos do clã. Preso por ter estuprado uma menor, Luis Alonso foi libertado por um grupo liderado da cadeia pelo irmão. Sem nenhuma reação da polícia.

O Cartel Valle lidava com grandes quantidades de cocaína. Em 2013, Digna Valle recebeu duas toneladas de cocaína, que chegaram a Honduras em lanchas de alta velocidade.

O sistema funcionava assim, rastreia Deborah Bonello: “Carregamentos de cocaína, maconha e heroína são levados para o norte, pelo mar, saindo da Colômbia e da Venezuela, e são entregues numa parte do país chamada La Mosquitia, no departamento de Gracias a Dios”.

Em seguida, a droga era levada para a Guatemala. “O feudo da família de Digna na fronteira em Copán era o lugar para atravessar a cocaína para dentro da Guatemala a caminho dos Estados Unidos. (…) O governo americano estima que, de 2009 até a prisão de Digna em 2014, todo mês ela e sua família transportavam milhares de quilos de cocaína através da fronteira Honduras-Guatemala. Digna chegava a fazer até 800 mil dólares com um único carregamento”, anota Deborah Bonello.

A América Central é o caminho para a droga chegar aos Estados Unidos, em grandes volumes. Honduras está localizada entre Colômbia, Peru e Bolívia — produtores de cocaína — e Estados Unidos, “o maior consumidor de cocaína do mundo”. É um dos motivos dos altos índices de violência na região.

Tráfico bancou presidente de Honduras

Juan Orlando Hernández: ex-presidente que foi bancado por traficantes | Foto: Reprodução

O poderio de Los Valle começou com roubo de gado e contrabando de cigarros. Em seguida, a cocaína da América do Sul inundou Honduras e robusteceu os negócios e a fortuna do clã de Digna Valle.

O Cartel Valle operava com o grupo Os Cachiros e, posteriormente, se tornou “um intermediário vital para as organizações que operavam na região, incluindo o Cartel de Sinaloa, de Joaquín “El Chapo” Guzmán, no México”. Aos poucos, o crime organizado decidiu “comprar” a polícia.

Assim como o crime organizado está financiando políticos no Brasil, Digna Valle financiou a candidatura de um primo, Rember Valle, para prefeito de La Florida. Ele foi eleito.

Numa reunião em El Espíritu, em 2013, narcotraficantes — entre eles El Chapo e Antonio “Tony” Hernández — e o prefeito de El Paraíso, Amilcar Alexander Ardón Soriano, se uniram para discutir o financiamento da campanha presidencial de Juan Orlando Hernández.

Na mesa da reunião havia uma pilha de dinheiro — 1 milhão de dólares. “O dinheiro era uma ‘doação’ da família de Digna e El Chapo para a campanha política do irmão de Tony, Juan Orlando Hernández, que viria a ganhar as eleições para presidente em novembro” de 2013, relata Deborah Bonello.

Digna Valle no início era a “face humana” do Cartel Valle. Mas, para proteger seus negócios e seus irmãos, mandava matar pessoas que estavam “prejudicando” ou poderiam “prejudicar” sua família. Era implacável.

Nascida em Malta, criada no Reino Unido, Deborah Bonello mora no México. Repórter investigativa, é editora sênior da “Vice World News”. Ela já colaborou com os jornais “The Guardian”, “Los Angeles Times” e “The Telegraph”. Também reportou para a BBC.

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