O Cão Sem Plumas

O Cão Sem Plumas, poema de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1950, retrata de forma crua e lírica a realidade do Rio Capibaribe e suas populações ribeirinhas ao longo do percurso pelo Estado de Pernambuco, onde 75 anos após em quase nada mudou, senão para o turista.

Nova leitura me permitiu imersão diferente em sua narrativa poética e fui anotando análises diversificadas para reflexão. Logo no início, o poeta descreve o rio como “uma espada de líquido espesso” e “um cão humilde e espesso”, metáforas que evocam a densidade e a humildade do Capibaribe. A imagem do “cão sem plumas” é recorrente, simbolizando tanto o rio quanto os homens que dele dependem:

“Como o rio, aqueles homens são como cães sem plumas.”

Essa metáfora ressalta a condição despojada e vulnerável desses indivíduos, comparando-os a cães desprovidos de sua proteção natural.

O poema também aborda a relação intrínseca entre o homem e o rio, mostrando como ambos se confundem na paisagem:

“Difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa o rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem.”

Essa passagem destaca a fusão entre o homem e seu ambiente, evidenciando a precariedade e a falta de distinção entre eles.

Impressionado pela força das imagens e pela musicalidade dos versos, dei-me conta que a obra não apenas retrata a degradação ambiental do Rio, mas também denuncia a situação das comunidades ribeirinhas que vivem à margem da sociedade, esquecidas e desamparadas.

A mensagem central do poema é uma crítica contundente à indiferença social e à exploração humana e ambiental, hoje causadora de toda a tragédia climática pela qual o mundo passa. João Cabral nos conduz por uma jornada poética que expõe as feridas de um Brasil profundo, onde o rio e seus habitantes são vítimas de um ciclo de abandono e miséria. Essa obra permanece atual, instigando reflexões sobre as desigualdades sociais e a relação do homem com a natureza.

A despeito do autor não ser tradicionalmente associado ao realismo mágico, sua abordagem poética na obra apresenta elementos que dialogam com essa corrente literária. A personificação do rio como um “cão sem plumas” e a descrição vívida das paisagens e das condições humanas evocam uma realidade que transcende o realismo estrito, inserindo-se em um contexto onde o fantástico emerge do cotidiano. Essa característica aproxima sua obra do universo literário de Gabriel García Márquez, onde o extraordinário se entrelaça com o ordinário de maneira natural e simbólica.

Nada obstante o ateísmo crasso de Nietzsche, o seu lampejo de crítica inteligente “desistir é um recurso radical de liberdade”, ressoa na temática de “O Cão Sem Plumas”, pois o poema explora a resignação e a luta das populações marginalizadas, sugerindo que, em meio à adversidade extrema, a desistência pode ser vista não apenas como rendição, mas como uma afirmação última de liberdade diante de circunstâncias opressivas.

Me lembrei do “Morro dos Ventos Uivantes” um romance, pois ambos compartilham uma atmosfera sombria e uma profunda conexão com a paisagem que molda o destino de seus personagens. A natureza em ambas as obras não é apenas um cenário, mas um participante ativo na narrativa, refletindo e amplificando as emoções humanas.

Quanto a “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo, a obra mergulha na interseção entre o real e o fantástico, explorando temas de memória, morte e identidade em um México pós-revolucionário. Embora distinto em forma e contexto, “O Cão Sem Plumas” também utiliza a paisagem e a condição humana para tecer uma narrativa que transcende o tempo e o espaço, refletindo sobre as adversidades enfrentadas pelas populações marginalizadas.

Fato é que a obra de João Cabral permanece extremamente relevante ao refletirmos sobre as injustiças sociais que persistem nas cidades brasileiras do século XXI. A metáfora do “cão sem plumas” simboliza não apenas a vulnerabilidade das populações ribeirinhas, mas também a de milhões de brasileiros que enfrentam diariamente a pobreza e a exclusão social nos centros urbanos. Apesar dos avanços em políticas de distribuição de renda, observa-se um ciclo contínuo de negligência e descontinuidade nos programas governamentais destinados a mitigar essas desigualdades.

Essa realidade é agravada por uma pirâmide social profundamente injusta, onde a concentração de riqueza nas mãos de uma minoria contrasta com a privação vivida pela maioria. Nos Estados Unidos e no Brasil, por exemplo, os 10% mais ricos controlam 60% da riqueza nacional, enquanto a metade mais pobre detém apenas 6% ou menos. Essa disparidade evidencia um modelo econômico que perpetua a concentração de renda e limita as oportunidades de ascensão social para as camadas menos favorecidas, sem plumas, pois as periferias das cidades continuam palmilhadas pelo cão sem plumas, arrematando com o seu poeta:

“A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada. O rio ora lembrava a língua mansa de um cão ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão. Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água. Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos povos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras. Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes.” (João Cabral de Melo Neto)

O post O Cão Sem Plumas apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.