O conto “Amor” é uma obra literária de gênio de Clarice Lispector

Helder D’Araújo

Especial para o Jornal Opção

Tarde eu te amei. Habitavas em mim e eu a procurar-te lá fora.
Santo Agostinho

Ler Clarice Lispector sempre é um soco no estômago, digamos assim.

De uma simples frase a todo o corpo de um texto seu a gente lê com o coração na boca. Tudo é sincopado.

Se alguém me perguntasse por onde começar a ler Clarice, diria: por suas crônicas. É óbvio que há crônicas de Clarice que são crônicas de Clarice. Tipo “Brasília esplendor” com suas dezesseis páginas. Salvo engano.

Hoje em dia a Editora Rocco publicou tanta coisa da bruxa que há um livro no qual pode-se ler somente frases retiradas de toda sua obra. É o caso de “As Palavras e o Tempo”. Diria: comecem por suas crônicas.

Parafraseio Tomás de Aquino: “Não se dá ao mar de braçadas”. O corpus literário de Clarice é extenso. Vai de missivas até seus grandes romances. Pode-se começar por onde der na telha. O que disse acima foi somente sugestão. A guisa de resenha, vamos ao que interessa.

Laços de Família: contos

Tenho em mãos mais um livro de Clarice. Estou com “Laços de família”. Trata-se de uma reunião de contos.

Meus olhos pousaram na estória de Ana. O conto chama-se “Amor”. Ana vive sua vida com marido e filhos em um apartamento quase quitado de forma tranquila. Contudo, em uma ida ao mercado para comprar itens para uma janta, familiares os visitarão, e acontece uma espécie de epifania a Ana.

Ana vê um cego de mãos estendidas, riso frouxo e mastigando um chiclete. A cena atinge-a de forma assim: “O mal estava feito” (página 22). Trata-se da vertigem que é a crueza do mundo. A visibilidade do mundo é tão clara que nos deixa cegos.

Como Ana havia esquecido isso? Será que a vida agridoce de mãe cuidadosa e esposa bondosa a havia alienado do que se passava na grande escuridão? Toda luz, por mais intensa que seja, projeta sombras.

E então: “Parecia ter saltado dentro da noite” (página 24). A náusea sobe-lhe à boca.

Sua relação com a alteridade dentro de casa exige-lhe, mas não como o universo ao lado que são os outros. Os de fora, os alienígenas. Ana dá-se conta de mais fatos.

A vida é periclitante. É arriscado viver. Num fluxo de consciência, Ana contrasta a vida de jovem antes de ser mãe. Os dados estão lançados. Sua realidade é outra agora. A nostalgia é ilusão. O que vale é o instante. O tempo de verdade é o presente. Passado e futuro são ilusões. Mesmo assim Ana já plantou suas sementes: “Ela plantara as sementes que tinha nas mãos…” (página 19).

A cidade dos homens é isso, esse equilibrista começando o seu trabalho e irremediavelmente espatifando-se no chão como presenciou Zaratustra. Todos veem o espetáculo, um cego de olhos abertos mastigando chiclete na escuridão, e mesmo assim uns tropeçam nos outros: “A mulher com um rosto desvia o olhar…; outra mulher empurra o filho; dois namorados se enlaçam. E o cego?” (página23).

Sobre o que sucede depois a Ana, seu momento de presença total no Jardim Botânico, eu indico ao leitor a leitura de “Natureza Urbana”, de Joana Bertholo.

Clarice Lispector: a Tchekhov da América, de acordo com Elizabeth Bishop | Foto: Reprodução

Ana dá-se conta que a cidade dos homens, uma antítese do Jardim (o Paraíso), não é a única possibilidade. “O jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno” (página 25). A natureza mesmo, após a queda humana em dizimá-la sistematicamente, resiste. É o apesar de. A personagem de Natureza Urbana toma uma decisão mais radical, mas deixo ao leitor constatar.

Ana retorna para seu pequeno mundo dentro do mundo. Dá um abraço forte no filho como se tivesse retornado da viagem de Ulisses. Prepara o jantar e não é somente sua subjetividade, seus botões, que sentem toda a nervura do real. “Entre os dois seios escorria o suor” (página 28).

Moe com seus botões o episódio do cego, mesmo assim o corpo não fica inerte. Desde o início do conto suas mãos tricotam, semeiam, limpa os móveis da casa, faz almoço, carrega a bolsa estrangulada de coisas. Este é o seu corpo, comei. A palavra do conto faz-se carne. E, nós, todos canibais — “o assassinato era profundo” (p.25) — a devoramos. “Um mundo de se comer com os dentes” (página 25).

Tudo correu bem. Ana abebera-se do doce momento de comunhão enquanto todos, nem anjos nem demônios, refestelam-se humanamente: “Ana aprendeu o instante pelos dedos antes que nunca mais fosse seu” (página 28). A vida a arrepiava, Ana constata. O dia fez o que todo dia faz, gasta-se, desperdiça-se como o café derramado (página 29). É a lógica da contingência, à maneira de Sartre. Peças de quebra-cabeça a montar-se. E com um sopro a flama do dia apaga-se enfim. Paradoxo. De um sopro vens e com um sopro vais.

Se é verdade que olhamos o que não nos ver, o que não vemos nos olha.

Helder D’Araújo, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.

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