O acerto de Lula da Silva e o equívoco de Kennedy Alencar sobre os militares… legalistas

Não há dúvida de que Kennedy Alencar é um jornalista responsável e competente. A defesa que faz da democracia é justa, oportuna, necessária. É preciso ser radical e considerar a democracia como valor universal.

Entretanto, na semana passada, no UOL News, Kennedy Alencar fez alguns comentários que primam pelo irrealismo político e, talvez, histórico.

Aqueles que têm responsabilidade pelo país, pela estabilidade de sua democracia, têm de fazer o que é possível. Manter aliados nas Forças Armadas contra golpistas civis — as vivandeiras de sempre — e militares é de um realismo ímpar, necessário, imperativo.

“O golpismo é uma coisa ainda presente nas Forças Armadas e Lula erra com essa estratégia acomodatícia do [ministro José] Múcio. Os militares nunca estiveram tão fracos desde a redemocratização em 1985”, afirma Kennedy Alencar.

Freire Gomes: o exemplar general anti-golpista | Foto: reprodução

O discurso é bonito — até de um romantismo tardio — e muito bom para gerar debates — nem sempre maduros e frutíferos — nas redes sociais. Mas Lula da Silva não está errando. Pelo contrário, está sendo realista. Porque a democracia, apesar de sua importância imensurável, não raro é mais “frágil” do que se imagina. Para mantê-la “ativa” e “viva”, a serviço de todos os cidadãos, às vezes é preciso fazer certas alianças, e até recuar, em parte, das grandes e boas ideias.

O que provou o 8 de janeiro de 2023? Que um grande grupo de baderneiros — com relativa organização e, aparentemente, comando — invadiu as sedes dos poderes da República, todos elas, com extrema facilidade. Num primeiro momento, as forças da democracia assistiram — inertes — uma espécie de golpe, ao qual, longe de faltar força e energia, só não contou, isto sim, com uma liderança orgânica e determinada.

A frase “os militares nunca estiveram tão fracos desde a redemocratização em 1985” é ótima, como formulação. Mas não está assentada em bases reais. Não traduz a realidade. As Forças Armadas não são fracas. Pelo contrário, são fortes, bem-preparadas e estão relativamente bem-armadas. Criar fraqueza no suposto adversário é um autoengano. Um dos piores… em termos políticos.

Lula da Silva e o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva | Foto: Reprodução

Como presidente da República, além de sua longa experiência como homem público, Lula da Silva sabe que ter as Forças Armadas como adversárias não é um bom negócio para o governo, para o país e para a democracia. Daí sua sensatez no trato das questões militares. A permanência de José Múcio, um moderado que sabe dialogar, no Ministério da Defesa é uma das provas de que o petista-chefe não perde tempo com ilusões pueris. Não é, ainda bem, adicto dos que sonham com um futuro radioso, esquecendo o passado, e deixando de viver no presente.

Para governar o Brasil, para arrancá-lo das trevas do bolsonarismo e retomar o crescimento econômico, além de reduzir as desigualdades sociais, Lula da Silva sabe que não pode ficar perdendo tempo com determinados assuntos, como criar crises com quem não está provocando crises. Os militares estão nos quartéis, respeitando a democracia e a gestão do petista, então não há, no momento, do que reclamar deles.

Num rompante conectado com o populismo político, tão em voga no jornalismo, Kennedy Alencar vocifera, na síntese do UOL: “A operação da Polícia Federal, deflagrada hoje [quinta-feira, 8] e que tinha como alvo Jair Bolsonaro e aliados, derruba a tese da existência de ‘militares legalistas’ no Alto Comando do Exército brasileiro que supostamente impediram o golpe, já que ao tomarem conhecimento da organização do mesmo, eles ‘foram omissos e covardes’, afirma o colunista do UOL Kennedy Alencar durante o UOL News desta quinta, 8”.

Kennedy Alencar acrescenta: “A vitória da democracia não é uma concessão de legalistas do Alto Comando do Exército que não embarcaram na aventura de Bolsonaro. Aliás, eles foram omissos e covardes. Até hoje a gente convive com uma mentalidade golpista nas Forças Armadas brasileiras. A gente precisa acabar com isso, elas não têm tutela sob a vida civil”.

No geral, Kennedy Alencar não está errado, pois as Forças Armadas devem mesmo submeterem-se à Constituição, e não a uma interpretação militarista, até golpista, da Carta Magna (o papo distorcido do poder moderador). Mas, curiosamente, a crítica ácida do jornalista ecoa, com outras palavras, o discurso do bolsonarismo a respeito de vários militares, que, como o ex-comandante do Exército Freire Gomes, seriam “cagões”. Piorando o grito bolsonarista contra os não-golpistas, o jornalista “cria iguais — legalistas e golpistas seriam farinha do mesmo saco — onde há diferenças gritantes. O analista que não percebe o singular no meio do geral, inclusive a força dos não-golpistas, mesmo quando silentes, acaba por fortalecer aqueles que são golpistas. A junção de forças inconciliáveis, para facilitar a análise de combate, acaba por ser improdutiva, quando não falsa e, até, perigosa.

Ao contrário do que sugerem Kennedy Alencar e o bolsonarismo, os militares que se posicionaram — e se posicionam — ao lado da democracia, de sua manutenção, merecem não o apupo, e sim o aplauso da sociedade. Lula da Silva e José Múcio estão certíssimos quando cultivam boas relações com os militares anti-golpistas. Noutros períodos da história, de 1930 a 1964, militares legalistas acabaram aderindo” aos militares golpistas — o que possibilitou a derrubada de presidentes da República, com o consequente envio da democracia e dos democratas para o ostracismo.

Agora, quando há militares legalistas, o que há de mais maduro e sensato é postar-se ao lado deles. Como estão fazendo Lula da Silva, José Múcio e todos os democratas que não querem a adoção de nenhuma ditadura (todas as ditaduras, de direita e de esquerda, são uma tragédia).

Em 1964, há quase sessenta anos, vários kennedys alencares escreveram e gritaram em praças públicas que não haveria golpe, que a democracia era sólida e os militares não tinham tanta força assim. Pois, entre 31 de março e 1º de abril de 1964 — apenas dois dias —, a democracia ruiu e os militares assaltaram o poder e governaram o país por 21 anos.

Ficar ao lado dos militares legalistas, como o comandante do Exército, Tomás Miguel Paiva, não é o mesmo que ceder ao militarismo. Na verdade, trata-se de somar forças com aqueles que acreditam que, fora da democracia, não há salvação.

Felizmente, temos um realista na Presidência da República, Lula da Silva, e não Kennedy Alencar, que, apesar de excelente jornalista, parece que faltou às aulas sobre a história do Brasil. Num país em que, em 93 anos — de 1930 a 2023 —, se teve tantos golpes de Estado, sempre com a participação de militares, é preciso ter cautela com os arroubos juvenis. A democracia, insistamos, precisa de aliados… e defensores, com e sem farda.

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