Voluntária de Goiânia relata desinformação, dificuldades e violência nos abrigos do Rio Grande do Sul

O Jornal Opção conversou com Adriane Las Casas, enfermeira gaúcha que mora em Goiânia e que foi ao Rio Grande do Sul ajudar no socorro à população vítima das enchentes, a fim de entender um pouco melhor como está a situação atualmente. Adriane conta que o alto nível da água persiste em alguns pontos, explica um pouco da logística dos abrigos e do recebimento de doações, além de compartilhar a rotina das vítimas dessa tragédia. 

Adriane conta que saiu de Goiânia no dia sete de maio rumo a Nova Hamburgo de carona num avião de uma empresária que estava levando medicamentos para o Rio Grande do Sul. Após uma parada, chegaram no aeroporto de Caxias no dia oito pela manhã. A mercadoria que estava no avião iria para um hospital específico, então, foi declarada como carga particular após apresentação de nota, dessa forma as doações chegariam ao destino específico.

“Explica que é uma carga particular, porque senão eles [forças oficiais] pegam, colocam no caminhão deles, e aí a gente não consegue mais reaver”, dessa forma foi informado à Adriane pelo pessoal que já estava no socorro à população. A enfermeira conseguiu chegar a Novo Hamburgo, seu destino final, após pegar carona com a Defesa Civil. 

Ela explica que “nós achamos que seria passageiro. Um dia ou dois e iria passar, mas até hoje não abaixou”, e, por esse motivo, sua rotina tem sido ir de um município a outro, distribuindo mantimentos entre os abrigos e realizando transporte de pessoas que se desencontraram nos primeiros dias. 

Adriane lida no cotidiano com pessoas de Novo Hamburgo, Estância Velha, São Leopoldo e Canoas entre outras cidades da região que, ou foram afetadas diretamente pela tragédia, ou servem como base de apoio para o resgate. 

Adriane Las Casas e voluntários em abrigo no Rio Grande do Sul | Foto: Acervo Pessoal

Nos abrigos 

A enfermeira gaúcha compartilha que existem abrigos oficiais, ligados ao governo e onde existe um maior número de vítimas das enchentes, os abrigos não oficiais, como igrejas e centros comunitários, e as casas das famílias que não foram afetadas pela destruição. Dois pontos foram destacados: o perigo crescente dentro dos grandes abrigos e a logística de distribuição das doações. 

“Quanto maior o abrigo, mais perigoso está”, afirma Adriane ao se referir a assaltos e abusos cada vez mais recorrentes. Como o policiamento nos abrigos não é constante, isso abre margem para roubos e violências entre as vítimas. Por esse motivo, a enfermeira explica que muitas pessoas têm preferido ficar em abrigos menores, na casa de outras famílias, ou até mesmo nos imóveis que não foram completamente alagados. 

“Começaram a fazer abrigos exclusivos para mulheres e crianças”, apontou um dos reflexos da crescente criminalidade dentro dos abrigos. Uma outra medida de segurança adotada em alguns casos, foi a contratação de seguranças particulares para guarda em momentos em que a polícia não esteja presente. 

Quando pensamos na lógica da distribuição de donativos, surgem dois problemas centrais. O primeiro deles é o acesso às cidades mais afastadas, ainda afetadas pelas enchentes, e o segundo é a logística para recebimento das doações. A maior parte das doações que chega até abrigos oficiais, independente se foram doações feitas a uma cidade ou grupo específico, geralmente termina retida alí mesmo, concentrando recursos em uma área.

Vídeo de Adriane Las Casas

A rede de solidariedade não oficial construída entre habitantes e voluntários ajuda também a redirecionar doações específicas de um ponto a outro. “Um vai passando informação aonde que tá faltando determinado item, como leite, às vezes precisa de leite em um lugar e no outro tá sobrando, então a gente faz essa comunicação, mas todos esses canais não são oficiais”, explica a dinâmica que se formou nos grupos das redes sociais.

Em abrigos menores e não oficiais, o abastecimento não é garantido pelo governo. “É tudo voluntário”, explica. Muitas famílias que foram vitimadas pela catástrofe se abrigam nas casas de pessoas que não foram afetadas a fim de evitar os abrigos, nesses casos, Adriane conta que tem casas com 20 a 30 pessoas. “Nesses pontos não tem nada de doação, isso é tudo voluntariado”, afirma antes de complementar: “Onde as pessoas estão nos abrigos menores, a gente tá tentando dar esse suporte”. 

Nível dos estragos 

“Tem lugares que até hoje não foram acessados por terra, só com helicóptero”. A enfermeira conta que alguns pontos do estado não possuem eletricidade, abastecimento de água, geradores ou contato terrestre. “Tem lugares que realmente não tá chegando nada de donativo, que são esses lugares mais distantes, mais difíceis”, explicou.

A enfermeira conta que não existe previsão para a água baixar em alguns locais, e, caso abaixe, as áreas serão zonas de risco permanente para alagamentos. Não existe previsão para retorno das pessoas, muitas empresas seguem debaixo d’água, muitos empregos e bens foram perdidos. “Realmente isso aqui, deixa eu te falar, não tem previsão de acabar, não”, lamentou. 

Quando questionada sobre as previsões oferecidas pelo governo, Adriane conta que alguns municípios já possuem projetos para reconstrução de alguns bairros em novas áreas, já que a antiga localização ficou comprometida de maneira permanente. Esse é o caso do município de Cruzeiro do Sul. “A gente já sabe que o bairro eles não vão deixar mais construir, então eles vão tirar as pessoas de lá, e dar outras áreas para os moradores”, compartilhou. 

Em outros pontos, não existe previsão para baixar o nível d’água, e nem se será permitido o retorno da população ou não. A essa situação se soma o fato de que algumas famílias apresentam resistência para deixar suas antigas casas. “O problema é muito maior do que a gente imagina, porque a prefeitura quer resolver de uma forma, mas quem está lá não quer dessa forma”, lamenta. 

Por fim, Adriane afirma: “o pior não é agora. O pior vai ser a hora que as pessoas começarem a voltar para casa”. O nível real da destruição só vai ser mensurado quando a água baixar. Casas, eletrodomésticos, maquinário industrial, veículos… o verdadeiro esforço para reconstrução ainda está por vir. O apelo da enfermeira é que a mobilização nacional não diminua com o passar do tempo, já que a maior necessidade ainda está por vir. “Agora o que a gente está fazendo é apagar o fogo”, concluiu.

Desinformação

Um ponto elencado pela socorrista como dificultador é a proliferação de desinformação e a desconfiança que o grande volume de notícias falsas gera na população. Um fator elencado por ela logo no início foi a descrença com os avisos meteorológicos. “Por isso que aconteceu das pessoas perderem tudo, ninguém nem acreditou, porque áreas que nunca alagaram foram alagadas”, aponta parte dos problemas. 

Ao perceberem que os avisos meteorológicos do estado e dos municípios eram reais, as pessoas já saíam das casas com a água na altura da cintura. “Tem tanto carro nas casas, tanta coisa que a gente vê que não é porque não quiseram tirar. Foi porque não deu tempo, e também eles não confiaram na previsão, nos anúncios”, afirma. 

Nesse ponto, a enfermeira diz que a população já começa a acreditar mais nos informes ligados ao clima. 

Entretanto, a desinformação atrapalha a situação no Rio Grande do Sul de outra maneira, na distribuição de doações. Caminhões que recebem informações falsas de que o acesso até determinada cidade não está disponível, então descarregam tudo que têm na primeira cidade que encontram, chaves pix falsas para doações, entre outras fake news que atrapalham no socorro. “Umas desinformações nesse sentido tem também”, lamenta.  

A enchente de 1941 

Após o início das enchentes que vêm afetando o Rio Grande do Sul nas últimas semanas, algumas pessoas começaram a compará-las com a grande inundação que aconteceu no território gaúcho em 1941. Essa comparação é usada como recurso para retirar da ação humana parcela da responsabilidade pela tragédia contemporânea. 

A inundação da década de 1940 afetou cerca de um terço do comércio e da indústria da região do lago Guaíba por cerca de 40 dias. O nível d’água chegou a 4,75 metros, inundou cerca de 15 mil residências e desalojou mais de 70 mil pessoas. 

Enchentes de 1941. Foto: Antônio Nunes/Acervo fotográfico do museu de comunicação social Hipólito José da Costa.

Já as enchentes que abatem o estado gaúcho hoje superam em muito essas marcas. Até o momento, são 2,1 milhões de pessoas afetadas pelas cheias, mais de 535 mil desalojados e cerca de 76 mil cidadãos em abrigos. Essa destruição, ainda em andamento, é resultado do nível das águas do lago Guaíba terem alcançado a marca dos 5,33 metros. 

Especialistas explicam que a diferença entre os dois eventos está no volume das chuvas. Enquanto na década de 1940 foram mais de 20 dias de chuva, trazendo cerca de 600 mm de precipitação, as enchentes atuais superaram a marca dos 200 mm em apenas três dias. A possibilidade de uma cheia tão violenta em tão pouco tempo torna uma série de áreas zonas de risco de forma cíclica, o que impossibilita ocupação humana permanente. 

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