O Lula de ontem sob a rédea curta de hoje

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para o seu primeiro mandato como presidente da República foi um momento de ruptura do paradigma de governo e política no Brasil. Antes do PT, o comando do país sempre esteve nas mãos da direita e da centro-direita, formada por uma ampla coalisão de centro, o denominado Centrão, que sempre foi peça chave na governabilidade do poder Executivo. A ascensão do PT ao poder não mudou os pesos, medidas e exigências desse bloco pragmático. A forma de lidar com o Centrão é que mudou e a partir do resultado das eleições de 2002, havia em Lula o ponto central da articulação política “no jeitinho brasileiro” de conquistar aliados, aproximar desafetos e manter os inimigos à vista. Naquele ano até o ex-presidente Jair Bolsonaro, na época deputado federal, afirmou que votou em Lula.

Depois de quatro mandatos do PT à frente do Palácio do Planalto e uma saída traumática através no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o partido volta ao poder em 2022 com Lula e uma conjuntura política, assim como o tempo, 20 vezes mais caótica no âmbito econômico, social e principalmente político com uma polarização extrema entre esquerda direita e principalmente a extrema-direita. Agora Lula e o PT não tem mais nem 10% do sentimento de esperança cultivado em 2002. A União e Reconstrução, presente no slogan de governo do terceiro mandato de Lula tem beirado a estagnação, parte por inércia e parte por boicote e agentes políticos.

Em 2002 a eleição ocorreu em um cenário de transição e incerteza, tanto político quanto econômico. O Brasil vinha de oito anos do governo FHC, caracterizado pela estabilidade financeira com o Plano Real, privatizações e políticas neoliberais, mas também por crises financeiras globais e nacionais, incluindo a crise cambial de 1999. Em 2002, o país enfrentava alta do dólar, desconfiança dos mercados e fuga de capitais. O pleito também foi pautado também pela fome e miséria que trazia uma realidade trágica estampada no Nordeste e Norte do Brasil.

Lula já havia concorrido à presidência três vezes antes (1989, 1994 e 1998), sempre apresentando uma postura mais radical de oposição ao sistema político tradicional e ao modelo econômico vigente. No entanto, para 2002, o PT desenvolveu uma estratégia de moderação para reduzir a colisão e conquistar setores econômicos e políticos que tradicionalmente se opunham à sua candidatura. O ponto chave nesta virada foi a Carta ao Povo Brasileiro, escrita por Lula em 22 de junho de 2002.

O país passava, à época, por uma profunda crise econômica no final do governo Fernando Henrique Cardoso. O presidente tucano foi o responsável, em seu primeiro mandato, pela estabilização da economia e pela criação do Real, moeda que possibilitou o controle da inflação e o crescimento econômico do país. No entanto, ao final de seu segundo mandato, uma nova crise econômica se aproximava. Havia medo de que um novo governo, direcionado à esquerda, não conseguisse lidar com a questão econômica a contento. O então candidato à presidência da república lança então a sua carta propondo a necessidade de discussão de uma agenda para lidar com a crise que se aproximava e afirmando que era preciso priorizar o desenvolvimento econômico sem esquecer da justiça social, bandeira que marcou a sua luta política desde o final da década de 1970, quando foi projetado como importante liderança sindical.

A carta foi um documento conciliador, responsável por afastar o medo e a insegurança que setores da sociedade tinham de governos de esquerda. Ao sinalizar uma relação amistosa com o mercado e garantir um governo que agiria pela ampla negociação nacional, Lula ganhou a confiança e a segurança necessários para levá-lo ao palácio do planalto. O anúncio de um novo contrato social, que previa o crescimento econômico atrelado à estabilidade da população foi a senha para a confiança na sua candidatura. Com isso Lula garantiu que dialogaria como todos os segmentos da sociedade, não excluindo nenhum grupo da sua política de estado.

Lula passa então a defender o que chama de projeto nacional alternativo, que deveria estimular a economia, gerar empregos e garantir a soberania nacional e afirma que diversas lideranças o apoiavam: desde intelectuais a empresários, muitos buscavam uma mudança segura para o país, e ele seria o responsável por esse novo direcionamento. O principal diferencial que o candidato petista apresentava na carta era o consumo de massas como o principal incentivo ao mercado interno. Esse investimento foi marca do governo petista e garantiu estabilidade e crescimento durante os dois mandatos de Lula. Ele garantia a atenção aos mercados interno e externo, mas sem deixar de olhar para as políticas sociais, investindo assim, na visão de Lula, em um país mais justo, mais eficiente e mais competitivo, como sinalizou no documento. Tudo isso seria possível com um conjunto de reformas, que deveriam entrar em pauta em seu governo: em primeiro lugar uma reforma tributária, que desonerasse a produção; depois a reforma agrária para rever a questão da distribuição de terras no Brasil; e por fim as reformas previdenciárias e trabalhistas.

Seu mandato começou com a implantação do maior e mais relevante de combate a fome que o país já viu e que se tornou referência mundial. Levantamentos do Instituto Nacional de Pesquisas Aplicadas (IPEA) e também do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que mais de 7,5 milhões pessoas saíram da miséria entre os anos de 2003 e 2006 e mais de 20 milhões saíram da pobreza. Com isso o país viu o índice de extrema pobreza cair significativamente.

As políticas sociais e econômicas corriam bem, mas no campo político Lula se deparou a grande crise do mensalão em 2005, penúltimo ano do seu primeiro mantado. O termo se refere a um esquema no qual parlamentares recebiam pagamentos regulares em troca de apoio a projetos de interesse do governo no Congresso Nacional.

O caso veio a tona após entrevista do ex-deputado federal Roberto Jeferson (PTB-RJ) à Folha de São Paulo. Ele afirmou que membros do Partido dos Trabalhadores (PT) pagavam uma “mesada” de R$ 30 mil a deputados para garantir apoio legislativo. O operador financeiro do esquema seria o empresário Marcos Valério, que era dono de agências de publicidade que mantinham contratos com órgãos públicos. Acuado pelas denúncias, Jefferson partiu para o ataque e disse que o tesoureiro do PT na época, Delúbio Soares, pagava uma “mesada” a parlamentares do PP e do então PL, hoje PR, em troca de apoio ao governo no Congresso.

O então presidente Lula só se manifestou sobre o caso nove semanas depois das primeiras denúncias, durante uma viagem a Paris. O caso chegou a derrubar o braço forte de Lula no primeiro governo, o ex-ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu.

Em um pronunciamento à nação, Lula tentou se explicar publicamente das denúncias de corrupção. Aparentando nervosismo ele, sem citar ninguém disse que se sentia traído e protagonizou o momento mais delicado do seu primeiro mandato. “Quero dizer a vocês, com toda a franqueza, eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento. Estou indignado pelas revelações que aparecem a cada dia, e que chocam o país”, afirmou

Após o escândalo, Lula apresentou outras versões sobre o mensalão. Já o tratou como uma tentativa de golpe contra o seu governo e anunciou que as denúncias de compra de voto no Congresso não passavam de uma farsa. Ele também já afirmou que a oposição inventou o mensalão como esquema de corrupção.

Entre acerto e erros, que faziam a crise voltar a estaca zero, Lula entrou no seu último ano do primeiro mandato pautado pelos resultados econômicos e também pelos significativos números da diminuição da miséria e da pobreza. Mas a eleição de 2006 já não foi tão fácil quando a anterior. Desta vez o país sai mais dividido e tão polarizado quanto antes.

Agora, em 2022, Lula ressurgiu depois de passar cerca de um ano e meio preso na sede da Polícia Federal, em Curitiba. Depois de quatro anos traumáticos, em que a gestão da pandemia de COVID-19 resultou em mais de 800 mil mortos, o atual presidente venceu a disputa conta o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Lula recuperou o mote do seu primeiro mandato “A Esperança”. A eleição foi a mais disputada e cheia de ataques desde a redemocratização e, por consequência, também a mais polarizada também.

A extrema-direita, com seu exército digital, tem dado muito trabalho à equipe do presidente desde antes da posse. O reacionarismo dos militantes bolsonaristas chegou perto de provocar uma ruptura na República com a tentativa de um golpe de Estado.

No início da transição, o então governo do ex-presidente Bolsonaro disponibilizou toda a estrutura de computadores e internet no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília. A clima de desconfiança era tamanho que o PT recusou todos os recursos e fez tudo com recursos do próprio partido. No dia da diplomação de Lula, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 19 de dezembro de 2022, manifestantes tentaram invadir a sede da Polícia Federal e ainda atearam fogo em ônibus do transporte coletivo, causando um verdadeiro caos no centro da capital Federal.

Com oito dias de mandato, o Brasil viu bolsonaristas radicais acampados na frente em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, invadirem as sedes dos Três Poderes. O Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal foram os mais destruídos. No dia dos ataques, o presidente Lula estava em Araraquara, visitando a cidade após fortes chuvas quando foi informado pelo prefeito, Edinho Silva (PT) do que estava acontecendo em Brasília. O presidente junto com outros assessores cogitaram a decretar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mas foram demovidos pela primeira-dama, Janja da Silva. Esse personagem, desde então, tomou papel central dentro do governo. Porém esse papel, não foi e até o momento, não é visto de forma positiva.

Nos outros mandatos do presidente Lula o Palácio da Alvorada e também a Granja do Torto eram muito movimentados. Lula fazia vários jantarem e tinha momento de confraternização com os parlamentares. Isso ajudava Lula na articulação política e o mantinha sempre próximo a deputados e senadores que eram peças chaves na articulação de votações no Congresso Nacional.

Hoje o Palácio da Alvorada é mais silencioso e fica bastante vazio se comparados ao período em que Lula governou entre 2003 e 2010. Janja é altamente controladora com o horário do presidente. As atitudes da primeira-dama causam incômodo na Esplanada dos Ministérios. O presidente tem seus horários para voltar ao Alvorada na hora do almoço e também para retornar para casa ao final do expediente. Quase toda reunião do presidente no Alvorada conta com a presença de Janja e, segundo fontes ligadas ao PT, ela sempre dá a sua opinião sobre o que é melhor ou não. O presidente tem aproveitado as viagens da primeira-dama para se reunir com parlamentares.

Diante desse cenário, recentemente, o que tem se visto é um presidente mais isolado, longe da articulação política e acuado ante um Congresso conservador e oportunista. A troca recente do ministro da Secretaria de Comunicação Social ainda patina e tenta administrar crises como a do PIX e também as recentes pesquisas de popularidade do governo que mostraram lula com aprovação de 42%.

Diante de tantos problemas, Lula nunca deixou de ser o Lula, ou seja, ainda é o mesmo animal político do sindicato no ABC Paulista, da oposição dos anos 90 e também do primeiro mandato no início dos anos 2000. Aos 79 anos, o presidente exibe boa forma física e um raciocínio rápido que o credenciam para estar presidente, mas está na hora de pensar em renovação política e também impor limites às credenciais da primeira-dama.

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