Contistas escrevem sobre a própria morte. Conto 5 — De Tainá Corrêa

A última cor na paleta

Tainá Corrêa

Especial para o Jornal Opção

Eu morri três vezes nessa vida.

Da primeira vez que morri, meu pai deixou de viver. Eu tinha 17 anos e a vida nunca mais foi a mesma – ela escureceu.

Da segunda vez que eu morri, nasceu meu primeiro filho. Eu tinha 31 e a vida nunca mais foi a mesma – ela passou a brilhar em azuis.

Da terceira vez que eu morri, nasceu meu segundo filho. Eu tinha 40 e a vida nunca mais foi a mesma – ela ganhou verdes vivos.

Minhas três mortes me mostraram quem eu sou, que cores me constituem.

*

Tenho uma bela coleção de quase-mortes.

Quase morri em todas as vezes que entrei num avião com a certeza de que estava em risco, que tinha colocado minha vida nas mãos de um piloto desconhecido, certamente maluco. Claro que passei o tempo todo interpretando as expressões dos comissários e claro que os motores só não pararam por causa da força do meu pensamento. E por isso, claro, não dormi em nenhum voo.

Quase morri em um ou outro acidente. Principalmente naquele em que eu estava no banco de trás de um carro que, por pouco, não caiu de um despenhadeiro.

Quase morri nos dois puerpérios. De sono, de cansaço, de fome, de loucura, de não ser mais a mesma, de estar estraçalhada em pedacinhos bem pequeninhos que nunca mais consegui juntar num eu coeso, ou minimamente semelhante ao que era antes. Quase morri pra ser só deles, só mãe, até entender que era exatamente este o problema – é impossível ser só mãe. Mãe também é gente.

Quase morri todas as vezes em que meus filhos adoeceram e eu me senti impotente, fraca, insuficiente. Quase morri de medo.

Quase morri em umas poucas doenças sérias – as três pneumonias e uma mastite severa (uma quase-morte dentro de outra).

Quase morri quando minha mãe teve câncer.

Quase morri quando meu filho mais velho, na época com três anos, saiu sozinho pela porta da sorveteria enquanto eu pagava a conta. Por segundos infinitos eu perdi meu filho.

Quase morri quando meu filho mais novo, ainda um bebê de um ano, teve uma convulsão febril. Por segundos infinitos eu perdi meu filho.

Quase morri quando sofri um aborto. Era uma facada ouvir que é normal. Não é normal. É comum. Era uma facada quando me diziam que pelo menos foi de pouquinho. Não é menos pior. Eu comecei a amar meu filho imediatamente depois dos dois tracinhos positivos. Eu criei uma vida toda ao ver aqueles dois tracinhos.

Quase morri quando no mesmo ano sofri três mortes. Morreu nosso cachorro. Meu filho, com três anos, chorou pra sempre a ausência dele. Como explicar a morte pra uma criança? Morreu o filho de uma amiga. Eu vi uma mãe perder um filho e não posso imaginar uma dor maior. Morreu uma amiga. Vi um filho, um menino de quatro anos, perder a mãe. Eu sei que essa ausência será uma dor fundamental.

Quase morri quando meu irmão morreu. Eu era pequena e tenho vagas memórias de tudo, mas a que me acompanha sempre é a dor do meu pai concluindo: perder um filho é como perder uma perna.

Minhas quase-mortes me mostraram o que importa pra mim – que formas destacar e o que é só cenário.

*

Eu nasci e renasci inúmeras vezes.

Renasci todas as vezes em que abocanhei um pedaço de rosca açucarada da minha avó – a melhor do mundo – ou o bolo de aniversário da minha mãe – o melhor do mundo.

Renasci em todas as viagens. Todas. Na que fiz pra ali ou lá pra longe. O que importa não é o destino ou a companhia. O que importa é o sair.

Renasci lendo e me permitindo ser outros. Renasci me escrevendo e inventando outros.

Renasci em orgasmos.

Renasci quando meus filhos nasceram. Morta a que eu era antes, nasceu uma mãe em mim.

Renasci quando me permiti aprender o que não tem utilidade. Principalmente o que não dá dinheiro. A fotografia, o desenho, escrever, plantar, nadar, dançar, tocar bateria.

Renasci todas as vezes em que minha barriga doeu de tanto gargalhar e que senti a gratidão de estar com amigos, de ter esses amigos e me sentir segura com eles. Renasci em cada conquista e em cada momento feliz deles também.

Meus renascimentos foram as minhas manifestações de vida. Foram eu, pura, vivendo, me transformando, sendo, no tempo que passa, ganhando novas tonalidades e contrastes.

*

A sensação de viver e morrer se misturam como as tintas na paleta de madeira do meu pai. Uma e outra, inseparáveis, criam outra cor. A cada mistura, a cada momento, um tom nasce no morrer dos outros. A cada mistura, nasce o novo. Um novo único. É impossível repetir. Viver e morrer é o que fazemos o tempo todo, cada vez de uma forma, num ciclo eterno de deixar ir e permitir o novo.

*

Na minha morte, agora, não penso no trabalho que não fiz ou no dinheiro que não ganhei. Sequer penso no que não escrevi. Penso em gente, penso em quem amo. Nos que já foram e nos que ficam. Me arrependo de algumas pequenezas e perdas de tempo. Não temos todo o tempo do mundo. O infinito não está à nossa disposição, afinal de contas. A morte é incontrolável e não nos cabe decidir quando. A morte é incontrolável porque a vida é incontrolável. Como uma onda no mar. Como aquela onda que meu pai pintou.

Minha morte, agora, é um nascimento que deixo pra outros viverem. Não sei o que nasce. Mas nasce.

Tainá Corrêa é escritora.

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